Em março de 2013, almocei num
restaurante da Vila Madalena com o então secretário editorial da Editora Abril,
Alfredo Ogawa, que vinha em nome do Roberto Civita me fazer uma pergunta.
"Você gostaria de dirigir o Grupo Playboy?", quis saber.
Eu era diretor editorial da
Saraiva, onde estava muito satisfeito, mas voltar ao lugar onde me formei
profissionalmente, trabalhar com Roberto, recuperar uma das três marcas que ele
considerava estratégicas para a empresa (as outras eram Veja e Exame) e fazer
funcionar na era digital um negócio então em dificuldade me pareceu um desafio
irresistível.
Ogawa disse então que Roberto
me pediu para "escrever vinte linhas" sobre o que eu faria com
Playboy. Ao voltar para o computador, depois do almoço, incontinenti escrevi
num e-mail as vinte linhas e apertei o botão. No dia seguinte, com outro
simples telefonema de Ogawa, estava contratado.
Uma parte divertida do desafio
seria trabalhar diretamente com Roberto, que gostava de discutir e acompanhar
de perto as mudanças editoriais e de negócios com entusiasmo juvenil. Quando
cheguei para trabalhar, no início de abril, porém, ele estava hospitalizado. A
cirurgia da qual imaginava voltar rápido se complicou. E ele nunca voltou.
A morte de Roberto foi uma
reviravolta brutal dentro da empresa. Entrei na Abril para desenvolver um
negócio com apoio do dono. Enquanto ele ainda estava lutando pela vida, no
hospital, fiz cortes de gastos, incluindo um ajuste na redação, com a demissão
de pessoal. Mudamos a cara da revista e trabalhamos na área digital para criar
público e obter novas fontes de receita. Porém, sem Roberto, a nova direção da
empresa de repente se mostrou desinteressada pela continuidade não só desse
trabalho como de tudo.
Playboy foi a primeira publicação
que a Abril anunciou estar prestes a fechar, com a decisão
"estratégica" de não prosseguir publicando títulos licenciados. A
notícia foi dada em julho, mês em que se vendia a publicidade para a edição de
aniversário, a mais forte do ano.
Enquanto a equipe de vendas
procurava fazer receita, eu colocava na capa a então protagonista da novela das
9 da TV Globo, Nanda Costa, num esforço para trazer de volta grandes estrelas,
além de recuperar seu jornalismo - enfim, colocar Playboy novamente à altura da
sua tradição. Ao mesmo tempo, a direção da empresa sabotava esse trabalho,
ventilando na imprensa a notícia de que a publicação já tinha acabado.
Não acabou. Com os cortes que
eu tinha feito, o aumento de receita, mais a multa pela rescisão do contrato
com a Playboy americana, na hora de fazer as contas, quem disse que Playboy
estava sendo fechada descobriu que financeiramente isso já não valia a pena.
As vendas estavam voltando a
crescer. A edição de junho, com a viúva do diretor Marcos Paulo, a atriz Antonia
Fontenelle, já havia dobrado o resultado da venda em bancas. A capa com Nanda
Costa foi a mais vendida desde a de Adriane Galisteu - lançada numa época em
que o mercado ainda não era tão afetado pelo meio digital.
Como eu mesmo é quem
contratava as mulheres da capa, passei a dar as notícias de Playboy em primeira
mão, em vez de deixar esse espaço para blogueiros que faturavam em cima da
revista e falavam mal dela quando contrariados. Quando comecei, Playboy tinha
no Facebook 250 mil seguidores. Nove meses depois, quando saí, tinha 1,2
milhão.
Tudo parecia ir bem, conforme
eu havia prometido a Roberto, mas a corrente passara a ser contrária e eu só
ouvia reclamações, como a de que estava crescendo demais na internet, o que
ocupava muito espaço no servidor.
Em vez de vender, graças a
mais audiência, a ordem era abater Playboy a pauladas. Certo dia, um analista
de sistemas entrou em minha sala, desanimado. "Hoje consegui derrubar pela
metade a audiência de três revistas", ele disse. "Nunca imaginei que
iriam me dar os parabéns por causa disso."
Além de vazar para a imprensa
a ideia de fechar Playboy, o presidente do Conselho, Giancarlo Civita, deu uma
entrevista ao Valor Econômico dizendo que ficaria apenas com Veja e Exame e o
foco dos negócios seria a empresa de logística, cuja importância no passado era
simplesmente a de entregar as revistas nas bancas de jornal.
Cobrado num encontro em
auditório lotado por executivos de publicações subitamente marcadas para
morrer, Giancarlo disse que tinha sido um mal-entendido e não havia dito nada
daquilo. Todos ali, porém, estupefatos tanto com a declaração quanto com a
negativa, sabiam que o Valor não erraria daquela forma.
A intenção deliberada de se
desfazer da empresa era facilitada pela administração ruinosa. Nessa época, seu
principal executivo, deixado ainda por Roberto, era Fabio Barbosa -
provavelmente a ideia mais incompreensível que Roberto e o próprio Barbosa
tomaram na vida.
Homem que vinha do mercado
financeiro, Barbosa ocupara o conselho de administração da Petrobras nos tempos
em que era presidido por Dilma Rousseff e o Petrolão navegava a pleno vapor.
Possuía pouca ou nenhuma familiaridade com um negócio editorial e era uma
figura incompatível com um cargo por meio do qual se encontrava à frente de Veja,
encarregada de investigar e denunciar, entre outras coisas, o Petrolão.
Barbosa colocou para dirigir
as revistas masculinas um jovem, Dimas Mietto, que me chamou à sua sala para
dizer que, a partir dali, seria meu chefe. "Quem é você?" - foi a
primeira coisa que me perguntou.
Respondi que eu era Thales
Guaracy, diretor do Grupo Playboy, da Abril. Dimas então me explicou, não sei
se para gabar-se, ou para me ofender, que, em seu emprego anterior, vendia
ração para cachorro. "Não é à toa então que você não me conhece", eu
disse. "Eu sou deste mercado." Pensei, mas não falei: ele devia ter
ficado no outro emprego. Ração para cachorro hoje em dia deve ser um negócio
muito melhor.
Todas as decisões tomadas dali
em diante tinham a intenção de derrubar a publicação. A redação em que
ficávamos foi reduzida, e o acervo de Playboy, segundo ordens de Dimas, foi
literalmente para o lixo, de modo a não ocupar espaço.
Suas decisões atrabiliárias
ficaram famosas na redação de Playboy, normalmente recheada por jornalistas
afeitos à ironia. Cada vez que ele dava uma ordem, diziam que tinha o
"toque de Dimas" - o toque de Midas, mas ao contrário.
Como eu não me dava por
vencido, e resistia, as coisas foram esquentando. Até o dia em que foi tomada
pela direção da Abril a decisão de fechar o site de Playboy, jogando quem
entrava na página da VIP, uma outra revista.
Fechar a área digital, onde eu
projetava crescimento, cortava qualquer futuro para Playboy. Eu achava que
tinha ainda um compromisso com Roberto, mas dali em diante não havia o que
fazer. Nem pude reclamar. Depois da minha saída, também acabaram sendo
despejados, um a um, todos os que estavam no andar de cima, de Dimas ao próprio
Barbosa.
Conto essa longa história para
dizer que não foi a mudança disruptiva do meio editorial que acabou com a
Abril. E sim a vontade de seus acionistas. A venda da área educacional por mais
de 3 bilhões de reais teria sido mais do que suficiente para cobrir a dívida,
que alcançou o 1,6 bilhão de reais. Mas não era isso o que eles queriam. A
empresa foi para a recuperação judicial, sem ajuda do dinheiro que passou para
as contas privadas dos herdeiros de Roberto.
Os Civita não são obrigados a
responder pelas dívidas da empresa, uma vez que a Abril é uma Sociedade
Anônima. Para eles, quanto menos compromissos, melhor. O processo para se
livrar do negócio culminou agora com a decisão, por um valor simbólico e quase
irônico de 100 mil reais, de vender a Abril a Fabio Carvalho, advogado
especializado em desintegrar empresas quebradas, que está para os negócios como
os desmanches estão para a indústria de veículos.
A venda para o ferro-velho não
foi concretizada, pois depende da aceitação pelos credores da proposta da
família de somente pagar pouco mais de 200 milhões. Os filhos de Roberto só não
conseguiram, ainda, demitir a eles mesmos.
Depois que saí, em novembro de
2013, Playboy durou ainda dois anos. Como nada mais foi feito, a curva tendeu,
na medida em que passou o tempo, a torná-la novamente deficitária, até que
acabou sendo fechada. O título foi repassado a um consultor de RH paranaense,
Marcos de Abreu, que colocou mulheres para dirigir a redação "porque elas
obedecem mais, os homens têm muitas ideias próprias", segundo ele mesmo
afirmou a mim, num restaurante dos Jardins.
Nem sei bem por que me
convidou para esse encontro, já que eu sou homem e ele nem parecia saber
direito qual era o meu trabalho. Comeu sem tirar o boné preto que usava, com a
marca do coelhinho na testa, e, no final, antes de despedir-se,
perguntou-me se eu queria uma revista autografada. "Por quem?" -
perguntei, meio incrédulo. "Por mim", respondeu ele.
Como era de se imaginar, a
revista fechou de vez em pouco tempo, no final de 2016. Estava financeiramente
quebrada e seus diretores eram duplamente acusados. Nos negócios, a matriz
americana rescindiu o contrato ao descobrir que eles estavam usando a marca
indevidamente para atrair mulheres a serem exibidas em um outro site. Na área
criminal, Marcos e seus colaboradores mais próximos passaram a autografar os
inquéritos movidos pelas modelos por assédio sexual.
Playboy virou história.
Destino melancólico também
devem ter Veja, Exame e as outras treze publicações restantes da Abril: marcas
tradicionais, com grande audiência, que podem até seguir, mas serão
canibalizadas.
Roberto sabia que a alma do
negócio de imprensa são as pessoas: seu editor, aquele que dá a direção, e seus
profissionais. Sem eles, e a forma como fazem as coisas, suas marcas não são
nada. Nas mãos dos filhos de Roberto, porém, a Abril tratou seus
colaboradores com o mesmo desprezo que reservou a seus produtos. Demitiu
diretores, executivos de confiança, sem aviso - em certos casos, com meia hora
para limpar a mesa, nas vésperas do Natal. Ao final, promoveu um calote nos
demitidos restantes, estimado em mais de 100 milhões de reais.
Acaba assim uma editora que
teve um papel fundamental, não apenas no desenvolvimento da imprensa profissional
como do próprio país. Sua trajetória se confunde no Brasil com a restauração do
estado de Direito após a ditadura militar, a luta pela democracia, o
desenvolvimento sustentável, o combate à corrupção, a busca pela justiça social
e, como estava na mensagem em letras douradas ornamentando o saguão, o
progresso da educação.
É isso o que está sendo jogado
fora.
Ao abandonar a boa imprensa e
os seus princípios, assim como seus esforços para vencer as dificuldades na era
digital, a Abril cometeu um suicídio empresarial. No lugar da antiga admiração,
deixou ainda um rastro de ódio entre os leitores, alimentado com a gasolina
destilada por publicações que se tornaram tendenciosas.
A esse ódio, somou-se o rancor
dos próprios funcionários demitidos e não pagos que, por suas famílias e
conhecidos, multiplicando-se nos meios digitais, difundiram seu ressentimento
com a empresa que, no passado, não apenas primava por tudo o que fazia, como
premiava anualmente, com Exame, os "melhores e maiores".
Título e Texto: Thales Guaracy, A República, 21-12-2018
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