Faz anos que das ruas
anda quase sumido o realejo, por isso é mais seguro — atenção, jovens! — rápido
lembrete. Observado por alguns, o tocador gira a manivela e o ambiente em volta
se recreia do som de poucas e repetidas músicas. No Velho Mundo tem mais
prestígio a representação; compõe, peça valiosa, paisagens urbanas da cultura
popular. O “orgue de Barbarie” [fotos] faz parte da cena pitoresca da
Paris sonhada por multidões (lá, sem o irrequieto papagaio tirador da sorte).
Uma das explicações para a origem da expressão “órgão de Barbárie” seria a
sonoridade tosca do realejo que lembraria, entretanto, os grandes órgãos das
catedrais. Entre nós, o realejo e o papagaio por gerações encantaram crianças e
seduziram adultos.
Viro a página. Na linguagem
comum, realejo tem emprego pejorativo, bastante usado: a repetição monótona de
um mesmo tema: “Aquele sujeito é um realejo”.
Entre realejo e avestruz, fico
com o primeiro. Diz a lenda (é lenda mesmo), o avestruz enfia a cabeça na areia
quando pressente o perigo. À vera, a ave encosta o pescoço e a cabeça no chão,
escuta melhor algum predador e fica menos exposta. Contudo, o uso consagrou a
frase, diante do perigo, o avestruz enfia a cabeça no chão.
De novo, escolho ser tocador
de realejo a fechar os olhos diante do felino que avança contra o avestruz (no
caso, todos nós). Vou apenas sublinhar e, quem sabe, ampliar coisas que já
disse. “Ideia dita uma só vez, morre inédita”, avisava Nelson Rodrigues.
São duas matérias dos últimos
dias. Em 15 de dezembro, Taís Hirata na “Folha de S. Paulo” descreveu novas
possibilidades de aplicação de capitais chineses no Brasil em minucioso artigo
intitulado “Após investir em energia, chineses miram saneamento básico
no Brasil”.
De outro modo, segundo o
texto, chineses, melhorando grupos chineses, vão comprar empresas estatais do
setor de fornecimento de água e coleta de esgoto (aqui, também, o tratamento de
resíduos). Ou comprar obras paralisadas, terminá-las e explorar comercialmente
os serviços.
Um dos grupos chineses
interessados é o Fosun, gigantesco conglomerado econômico. Segundo informações
coletadas na rede (minha maior fonte), tem maioria de capital privado. Um dos
proprietários, Guo Guangchang [foto], às vezes chamado de Warren Buffett
chinês, faz parte do Conselho Político Consultivo do Povo Chinês, uma espécie de
Senado dominado pelo Partido Comunista Chinês. De outro modo, é empresa próxima
do governo. Preocupa. A matéria da Folha nada traz da proximidade do grupo com
a tirania imperialista de Pequim.
Três outros grupos chineses,
informa Taís Hirata, têm interesse em comprar empresas ligadas ao saneamento
básico. O primeiro deles é o CCCC (China Communications Construction Company),
sociedade anônima, com faturamento anual de aproximadamente 70 bilhões de
dólares. É estatal chinesa; de outro modo, está em sintonia com as diretrizes
do Partido Comunista Chinês (PCC). Nenhum diretor é indicado sem a anuência do
partido. O segundo grupo é o Datang, outra estatal chinesa, com faturamento
anual em torno 30 bilhões de dólares. O terceiro grupo é o CGGC (China Gezhouba
Group Company Limited), também empresa estatal, com receitas anuais em
torno de 15 bilhões de dólares. O artigo nada diz que dos quatro grupos, três
pertencem ao governo chinês, de outro modo, agem em sintonia com as diretrizes
políticas do Partido Comunista Chinês. Desde há anos, esse é o padrão usual da
imprensa brasileira, esconde informações essenciais para o juízo equilibrado e
objetivo do leitor.
Deixo para trás as informações
do artigo de Tais Hirada, planos para o futuro, e me detenho em editorial do
Estadão, 9 de dezembro, intitulado “O peso da China”, análise do
presente. Nos primeiros onze meses de 2018, o Brasil acumulou superávit
comercial de 51,7 bilhões de dólares. Desse total, 26,2 bilhões de dólares
vieram do comércio com a China, 50,7%. Em 2017, 30,7% do saldo comercial vieram
das trocas com a China. Dos 220 bilhões exportados nos onze primeiros meses de
2018, 58,8 bilhões foram para a China, 28,8% do total. Constata o
editorial: “Só esses números bastariam para mostrar a crescente
influência da China sobre a economia brasileira”.
A situação é mais preta: “Há
outro aspecto que resulta em laços econômicas mais fortes. É a presença cada
vez maior do capital chinês nos investimentos estrangeiros.” Capital
chinês (sic!). Desde 2003 até hoje, segundo a Secretaria de Assuntos
Internacionais (SEAIN) do Ministério do Planejamento em 269 projetos houve
investimentos chineses anunciados e confirmados de 124 bilhões de dólares.
Desse total, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China, 87% foram de origem
estatal, 13% de origem privada.
Vou, de novo, escrever o que
ninguém ou quase ninguém põe no papel com clareza: esses 87% é dinheiro
de empresas estatais chinesas, que trabalharão pelos objetivos do PCC, e cujos
diretores se alinham sempre com a estratégia do partido. Os 13% restantes,
via de regra, são de empresas que acertam o passo com o governo chinês. Não
custa lembrar, de momento, a China luta com os Estados Unidos por áreas de
influência, situação que está se refletindo em disputas comerciais e, na
América Latina, apoia ativamente Cuba, Venezuela e Bolívia.
A própria linguagem
eufemística da imprensa (investimento chinês, grupos chineses, capitais da
China), que atenua a realidade bruta (dinheiro cujo dono é o governo
chinês, longa manus do PCC), é triste indício de que o Brasil
já experimenta incipientes reações de protetorado. A esquerda não dá um
chiadinho contra a avalanche das estatais chinesas na economia brasileira; ela,
agora, silenciosa, mas historicamente tão barulhenta nas diatribes contra o
capital estrangeiro. Não adianta fechar os olhos para a realidade. Ela é o
realejo estridente, óbvio ululante.
Título, Imagens e Texto: Péricles Capanema, ABIM, 20-12-2018
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