Aparecido Raimundo de Souza
ASSIM QUE TUGÚRCIO meteu os pés na lojinha onde se tirava fotocópias de documentos, uma
mulher na casa dos seus vinte e cinco anos, com um par de óculos de lentes
verdes, fundo de garrafa enfiado no rosto, se dirigiu a ele, solícita:
— Bom dia. Que coincidência! Ia
mesmo ligar para o senhor...
— Algum problema?
— Mais ou menos — atalhou a dona
em meio a um sorriso forçado. — Lembra
daquela moça que estava aqui procurando serviço? Eu imprimia uns currículos
para ela e o amigo aí se interessou? Disse que havia gostado do jeitinho dela.
Vocês se acertaram, e, parece que, ao final, ela seria chamada para fazer um
teste...
— Isso tem tempo...
— Um bocado, por sinal.
— O senhor não tem o telefone ou o endereço dela?
— Não, não tenho.
— Quando o senhor recebeu a figura, lá no seu escritório, não fez uma
ficha?
— Não, não tenho este costume. Submeto apenas a uma pequena entrevista,
tipo assim, jogo logo no fogo, ou seja, na prática, para saber se lida
direitinho com o computador, se atende bem ao telefone, e, o mais importante:
se sabe recepcionar o público. Como era mesmo o nome dela?
— Jucunda!
— Jucunda?
— É. Jucunda.
— Jucunda, Jucunda... Embora a pessoa não me seja totalmente estranha à
mente, e o nome diferente, meio que exótico, não guardo muita coisa...
— Procure puxar pela memória — arrematou encarando com os óculos entre as
mãos, deixando, a nu, seu rosto de feições perfeitas. — Jibóia lhe pediu para
dar uma forcinha, me parece que ele a conhecia, não sei de onde.
— Jibóia? Espera lá. Meu ramo não
são as cobras...
A esperta se abriu numa gargalhada espalhafatosa, mas, em seguida, voltou
a se trancar com ares de escassos amigos:
— Jibóia é o meu marido. Deixa de palhaçada.
— Ah, Jibóia! Conheço seu esposo por outro nome.
— Qual?
— Co... Come... Comedor...
— Como disse? Repita, por favor. Não escutei direito...
— Comendador. Conheço seu marido pelo nome, ou pela alcunha, como queira,
de Comendador.
— Entendi... Mas o senhor se aludiu ao meu marido como...?
— Me referi a ele como Comendador.
— Não, antes. Volta a fita.
Tugúrcio tentou consertar, arrumando a gafe:
— Que fita, dona?
— O senhor se reportou ao meu marido como comedor. “Rebubina”, por gentileza.
— Asseguro que a senhora está
redondamente enganada.
A criatura voltou a colocar e, no mesmo ímpeto, a retirar da face, os óculos fundo de garrafa. Encarando
Tugúrcio com um olho aberto e o outro fechado, propositalmente (como a
expressar “acha que sou alguma idiota ou otária?), alfinetou:
— Enganada? Euzinha, enganada? Ta bom!... Me chama de burra que eu gosto!
— Ele quem?
— O Jibóia!
— Em casa, destilando veneno. Inventou umas dores nas costas. Mas
voltando à Jucunda: o senhor não tem mesmo o telefone dela?
— Não tenho. Sinto muito.
— Estranho! Ela não ficou com o senhor uns dias, fazendo testes?
— De forma alguma.
— As informações parecem meio desencontradas.
— Não entendi, senhora.
— Jucunda voltou aqui dias depois e me disse que foi aprovada e que o
senhor até viajou em companhia dela para São Paulo e Belo Horizonte...
— Nunca fomos a nenhum desses lugares.
— Pois é...
— Confesso sinceramente que não estou entendendo onde quer chegar. Se a
Jucunda voltou a lhe procurar, por que a senhora não pediu o telefone ou o
endereço?
— Na verdade eu pedi. Claro que
pedi. Anotei num papelzinho por aqui e, na correria, acho que, por descuido,
acabei jogando no lixo.
— E o Come... Digo, o Comendador... Ele não sabe onde a encontrar?
A estas palavras, a fisionomia da cidadã mudou de expressão. Rugas
fortes, prenunciando furor e descontentamento,
invadiram sua têz deixando-a vermelha e antipaticamente grosseira.
Cuspiu marimbondos, visivelmente fora de si:
— Esta vendo? O senhor voltou a
invocar o Jibóia como...
— Longe de pensar besteira,
senhora. Por favor.
A mulher, entretanto, seguiu veemente:
— Eu acho que o senhor sabe alguma coisa e não quer me falar. Vai ver ela
e Jibóia tem um caso, e, por isso, o prezado não aprovou a permanência dela em
sua empresa.
— Por favor, senhora. Esquece. Não sei da moça, nem do paradeiro dela.
— Espera um segundo... Estou me lembrando! O senhor gravou o número dela
em seu celular.
— Jamais gravo número de possíveis ou futuras candidatas. Fique a
vontade, pode ver.
Dito isto, Tugúrcio passou as mãos da mocréia seu aparelho. — Veja por si
mesma. Puxe a lista de contatos. Nem o do Come... Perdão, nem o do Comendador
eu sei de cabeça...
— Pela milésima vez. Perceba, o
senhor menciona o Jibóia como comedor. Ele é comedor? O senhor sabe de alguma
paquera dele? Agora tenho certeza. Desembucha.
— Senhora, por favor.
— Abre o jogo. E me passa os contatos da maldita Jucunda.
— Minha senhora, eu não sei da Jucunda. Pergunte ao Comedor... De novo...
Pergunte ao Comendador...
— E acha que já não indaguei dele exaustivamente?
— E o que seu marido disse?
— Me enrolou... Vocês, homens...
—Vai ver ele não sabe mesmo. Sua única saída é achar o tal papelzinho. A
senhora dever ter colocado em algum lugar. O que não falta, por aqui é papel.
De repente...
— Descreva de repente!
— Quando a senhora menos esperar, ele aparece.
— Sabe o que eu acho desta
história toda? Que o senhor está
acobertando meu marido. Seu pilantra,
safado. O senhor mais Jibóia devem ter se aproveitado daquela sem vergonha. Vamos, abra o jogo... Volte aqui, seu cínico,
volte aqui...
Na calçada, às carreiras, Tugúrcio ainda pode ouvir nitidamente o
derradeiro desabafo da furiosa e espevitada esposa. Ela subia pelas paredes:
— Não é que o filho da mãe me
deixou feito uma debilóide, falando
sozinha?! Deixa estar: hoje o Jibóia não me escapa...
Título e texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo, 12-6-2020
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