terça-feira, 2 de junho de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Ganha quem pode mais...

Aparecido Raimundo de Souza

O PAI CHEGA CORRENDO  e  entra na sala, quase aos trambolhões. Ao ver o filho grudado na televisão dirige-se a ele e indaga, curioso:
— O que você está assistindo?
— Pica-Pau.
— Bota um pouquinho nas Meninas Superpoderosas.
— Eu não gosto da Florzinha, nem da Lindinha nem da Docinho.
— Não gosta?
— Na verdade, odeio de morte as três.
— Então, ao menos, vamos ver um pouco o Quarteto Fantástico.

— Pirou, pai?
— OK. Que tal Yin Yang Yo?
— Qual é, pai? Assim o senhor me racha a cara. Por que não compra outro aparelho e bota lá no seu quarto junto com o da mamãe?
— Filho, no quarto que divido com a sua mãe, colocar outra? Vai ser uma loucura. 
— Por que uma loucura?
— Sua  mãe gosta de novelas. Eu odeio novelas.
— Mesmo assim... Compra outro aparelho e coloca aqui na varanda, ou no quarto de hóspedes. O apartamento tem quatro quartos... 
— Sem chances. Um aparelho aqui na sala e mais um no quarto de casal?

— O que é que tem? Não desfrutamos aqui de um montão de coisas em duplicata? Duas geladeiras, dois freezers, duas máquinas de lavar, duas camas de casal, duas empregadas, dois carros na garagem, dois computadores, dois relógios?
— Isso é diferente, filho, aliás, algumas coisas são indispensáveis.
— O senhor não acha indispensável querer que eu tire do Pica-Pau para ir ver outro desenho só porque o senhor quer?
— Vou fingir que não ouvi. Esclareça uma dúvida, mocinho: já ouviu falar dos Padrinhos Mágicos?
— Muito. Até demais. Por falar neles, o senhor se parece bastante com o vilão da história.
— Que história? Que vilão?

— Falo de Timmy Turner, um garoto muito legal.  Ele é um dos personagens dos Padrinhos...  Tem 10 anos, a mesma idade que eu. Os adultos, em volta dele (assim como o senhor e a mamãe), vivem o tempo todo tentando dominar a sua vida. “Faça isso, não faça aquilo, vista azul, dispense o branco, coma isso, não coma aquilo”. Existe também uma babá chamada Vicky, que é  como se fosse um terror à parte. Todos infernizam a vida do pobre Timmy. Porém, a ajuda para a sua desdita...
— Calma ai. Não entendi. Para sua o quê? Quer por favor repetir?
— Desdita, pai. Desdita.
— O que é desdita?

— Encheção de saco. Azaração. Blá, blá, blá. A salvação para o infeliz vem de Cosme e Wanda, que são seus Padrinhos Mágicos. Se ao menos eu pudesse contar com uma dupla igual a eles...
O pai do moleque se prostra, boquiaberto:
— O que faria?
— Pediria para me tornar invisível...
— E para que, criatura de Deus?
— Para não ser enxergado. Eu ficaria, por exemplo, aqui sentado, as pernas para o ar, tomando refrigerante, no meu colo uma baciada de pipocas e curtindo meus desenhos preferidos sem vivalma perturbando as idéias, ou azarando...

O pai pensa em partir para cima do petulante moleque, aplicar-lhe uns bons tabefes, contudo, tenta parecer calmo e tranquilo. A resposta malcriada do gurí lhe coloca os nervos em frangalhos, porém, conta até vinte e pondera a sua autoridade:
— Olha aqui, seu engraçadinho. Se eu passasse por aqui e a televisão estivesse ligada e eu não visse ninguém, desligaria.
O moleque, sem papas na língua, rebate, na lata:
— De jeito nenhum. Se eu fosse invisível, o senhor não teria a menor chance...
— Chega de conversa, seu respondão. Para seu quarto. Está de castigo.
— Sabe o que eu vou fazer, pai?
— Me obedecer, nada mais. Quarto.

— Tudo bem, eu vou, mas antes eu irei lá no oitavo andar e buscarei a Turma do Bairro. O chefão mora aqui no nosso prédio.
— Turma do bairro, que turma do bairro?
— São crianças na mesma faixa de idade que eu.
— E dai, o que tem a ver os fundilhos com as calças?
— Sabe o que elas possuem em comum comigo?
— Não faço a menor idéia.
— Elas se rebelam contra as regras tirânicas dos mais velhos, como acabei de fazer agora.
— Regras tirânicas, mocinho?
— Sim senhor. Tirânicas.
— Para o quarto. Rápido. Ande. Quartooooo...

O garoto ensaia alguns passos em direção aos seus aposentos, contudo, estanca no corredor:
— Posso, ao menos, ver o finalzinho do Pica-Pau?
— Não.
— Deixa, pai.
— Já disse: não. ENE... A... Ó... TIL.
— Só hoje...
— Não, não, não...
— Compra um aparelho de televisão e me dá de presente. Aí eu fico no meu quarto e...
— Deixa de estudar. Devo lembrar que as suas notas estão péssimas. Vi seu boletim. Uma vergonha, uma vergonha. Cinco em matémática, um virgula dois em redação...

— Poxa, pai, magoei!
— Quarto.
— Pai, me escuta: eu prometo estudar, ficar menos tempo na frente da televisão e o melhor, libero a TV aqui da sala para o senhor se esbaldar com  Grotescologia.
Risos.
— Sê besta, seu fedelho! Prefiro Backyardigans. Agora, pela última vez. — Q u a r t o.
O pequeno vira as costas e deixa definitivamente a sala, aos prantos. O pai corre até a cozinha, pede a uma das serviçais que providencie batatas fritas, enquanto ele, abre uma latinha de cerveja e retorna à sala. Se apodera, então, do controle remoto e muda, ligeiro, para o canal onde está sendo exibido as Meninas Superpoderosas.


Neste exato momento, acontece um imprevisto. Uma ocorrência  inevitável.  As três gatinhas da série animada, aparecem na tela enorme da Sansung Q900R, de 65 polegadas e  congelam a imagem, como se fosse a coisa mais corriqueira do mundo.  Em gestos espavoridos, mostram as línguas ao sujeito que, assustado, deixa cair a bebida que se esparrama no carpete. Ato contínuo, mandam uma banana bem grande para o boquiaberto cidadão que se esgoela num grito de terror e espanto. Em seguida, o trio sai voando de dentro do aparelho e ganha a janela da sala escancarada para os confins da tarde que se avizinha no horizonte.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 2-6-2020

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