sexta-feira, 19 de junho de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Irrecusável

Aparecido Raimundo de Souza

O FILHO SE VIRA para o homem alto, magro, rosto marcado pela vitalidade de uma vida saudável e sem problemas, imoralmente bonito, ombros largos, quadris estreitos e um sorriso vaidoso, que torturava as mulheres, neste momento muito bem instalado no estofamento de veludo branco do sofá em forma de ele, da sala imensa, onde assiste a uma partida de futebol de seu time preferido e manda a pergunta:
- Pai, dá pra descolar a chave de uma das “caranga?”.

O sujeito responde com evasivas, sem descolar os olhos do enorme aparelho de tevê que ocupa toda  a parede:
- Nem pensar. Lembra da última vez em que caí na besteira?
- Esquece aquele dia, pai...
- Como esquecer? Além de você ter ido parar no hospital, ainda fiquei uma semana com o carro preso.
- Já passou pai. Pedi desculpas mil vezes. E paguei todos os prejuízos causados.

- Desculpar até desculpei, filho, você sabe disso. Não sou de guardar mágoas. Esquecer, porém, acredito que vá demorar um bocado. Tudo bem que você pagou todos os danos e estragos, mas tenha sempre em mente que foi com meu dinheiro.
- Mesada, pai. Com minha mesada.
- O que no fim das contas dá no mesmo. E a vergonha? Acaso se recorda do vexame que passei perante meus colegas da repartição? Aguentei uma enxurrada de gracinhas e constrangimentos a semana inteira!

- Pai, tô com uma mina nova no pedaço. Vai me deixar na mão?
- Acertou na mosca. Vou lhe deixar a ver navios e barquinhos.
- A gatinha com a qual irei sair, tem dezoito anos, é modelo, e dentro em breve estará numa revista masculina de circulação nacional exposta em todas as bancas, peladinha, sem nada, como veio ao mundo... 
- Desista. Não! Ademais, ela é sua, não minha.
- Só hoje, pai. Prometi que a levaria a um restaurante.
- E depois?

- Ainda não decidi.
- Esse é o problema, filho...
- O máximo que poderá rolar é um motel de beira de estrada. Afinal, tal pai, tal filho...!
- Uma ova. No meu tempo não tinha essas mordomias. Ai de mim se pedisse o automóvel a meu pai, seu avô.
- Pera lá. E se o senhor fosse junto comigo?
- Segurando vela? Acaso me acha, aos sessenta e nove anos, com cara de castiçal?
- O senhor não coopera. Leva tudo à ferro e fogo.

- Por essa razão cheguei ao patamar em que estou. Na sua idade, dava um duro danado para ajudar em casa. Até a limpar latrinas eu me submeti.
- Não sou nenhum vagabundo. Tenho meu trabalho.
- E o que faz com o dinheiro?
- Pago a faculdade, invisto em roupas e sapatos. O senhor nunca precisou comprar um caderno ou um livro para mim. Bem sabe que os livros de medicina são caros...
- Por certo, nessa parte você tem toda razão. Uma sugestão: por que não junta, todo mês, uma quantia e dá entrada num carrinho?

- O senhor sabe que ganho pouco. Ainda que essa mixaria fosse juntada à mesada que o senhor me direciona todo mês, não daria nem para o cheiro. Leve em conta que não tive a mesma sorte que bateu à sua porta. De mais a mais, os tempos mudaram. Quando o senhor tinha a minha idade... Era tudo mais fácil.
- Fácil? Fácil? Você diz fácil!  No meu tempo, filho, no meu tempo não existia uma série de coisas como televisão em cores (olha o tamanho desta aqui e das outras  dispostas nos outros quartos), não tinha computador com tecnologia de ponta, Internet, fax, telefone sem fio, Facebook, Instagram, Google, Linkedin, enfim...

- Cá entre nos: o senhor pode não querer dar o braço a torcer, mas no fundo concorda comigo e sabe que tenho razão. Vamos, pai, na moral, libera uma das “carretas!”.
- Terminantemente, não.
- O senhor não vai sair de casa esta noite.
- Eu sei...
- Tem dois belos possantes parados na garagem. Dispensa um deles!
- Dois possantes -, como você acabou de frisar -, comprados com o suor do meu rosto. Meu jovem mancebo faça como eu: vá à luta.

- Pai, deixa de jogar as coisas na minha cara. Ei, por que não vem comigo? Estou lhe convidando. Vamos, mamãe está viajando, só regressa na sexta-feira.
- Não, não, não!
- Deixa de ver esse jogo chato. Seu time está perdendo, e depois não tem nenhum programa de televisão que o senhor se amarre.
- Pensando nisso, aproveitei, passei na locadora e peguei dois filmes...
- Locadora, pai? Ainda existe esse troço?
- Não existe mais, por certo. Uns fecharam, outros faliram... Todavia... O meu amigo Mário mantém a dele na garagem de sua casa com um acerto considerável. E eu gosto de ver os filmes em CD.
- Meu Deus, pai... Que coisa mais retrógrada!
- Pode até ser mas eu me amarro.

- OK, pai. Gosto não se discute. O que seria do vermelho se todos gostassem só do amarelo?  Fique com seus DVDs. Está ai um excelente motivo para jogar um dos “pés de borrachas” na minha mão, vez que não quer ir comigo pra balada. Vai, manda a chave. Dou a minha palavra que estarei de volta em quatro ou cinco horas.
- Você não sabe o que significa quando uma pessoa diz não? Filho, não é não. Ene, a, o -, o... Ó com a cobrinha em cima. Sem esse sinalzinho ortográfico a palavra se pronunciaria nao.
Diante de tantas recusas e negativas, o rapaz tristonho e cabisbaixo se afasta em direção ao seu quarto.

Antes de subir a luxuosa escada em caracol e sumir, de vez, no corredor a se perder de vista do segundo pavimento, olha para o velho pai numa derradeira tentativa de demovê-lo da amuação e fazer com que abra a guarda e descole a BMW preta ou a Mercedes vinho recém-adquiridas.
- É uma lástima...!
- O quê?
- Uma lástima, uma pena. Terei que ligar e desmarcar com a gatinha que jantaria comigo! Não quer repensar com mais calma na ideia? 
- Desista. 

 - Que pena. Fazer o quê! Minha beldade me disse que traria uma coleguinha da Agência. Pensava aqui com meus botões. Se papai fosse comigo, jantaríamos os quatro, e, depois...
Inesperadamente o homem dá um salto do sofá. Desliga a televisão e encara o filho. A sugestão inesperada do rapaz pôs um brilho novo nos olhos carrancudos do enfático cidadão:
- Por que não disse de uma vez?
- O quê, pai...?!
- Que a sua namoradinha traria, à tiracolo, uma amiguinha?
- Eu...
- Fico pronto em cinco minutos. Tome aqui o molho das chaves. Desça até a garagem e escolha: a BMW ou a Mercedes?
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha,  Espírito Santo. 19-6-2020

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