Aparecido Raimundo de Souza
O FILHO SE VIRA para o homem alto, magro, rosto marcado pela vitalidade
de uma vida saudável e sem problemas, imoralmente bonito, ombros largos,
quadris estreitos e um sorriso vaidoso, que torturava as mulheres, neste
momento muito bem instalado no estofamento de veludo branco do sofá em forma de
ele, da sala imensa, onde assiste a uma partida de futebol de seu time
preferido e manda a pergunta:
- Pai, dá pra descolar a chave de uma das “caranga?”.
O sujeito responde com evasivas, sem descolar os olhos do enorme aparelho
de tevê que ocupa toda a parede:
- Nem pensar. Lembra da última vez em que caí na besteira?
- Esquece aquele dia, pai...
- Como esquecer? Além de você ter ido parar no hospital, ainda fiquei uma
semana com o carro preso.
- Já passou pai. Pedi desculpas mil vezes. E paguei todos os prejuízos
causados.
- Desculpar até desculpei, filho, você sabe disso. Não sou de guardar
mágoas. Esquecer, porém, acredito que vá demorar um bocado. Tudo bem que você
pagou todos os danos e estragos, mas tenha sempre em mente que foi com meu
dinheiro.
- Mesada, pai. Com minha mesada.
- O que no fim das contas dá no mesmo. E a vergonha? Acaso se recorda do
vexame que passei perante meus colegas da repartição? Aguentei uma enxurrada de
gracinhas e constrangimentos a semana inteira!
- Pai, tô com uma mina nova no pedaço. Vai me deixar na mão?
- Acertou na mosca. Vou lhe deixar a ver navios e barquinhos.
- A gatinha com a qual irei sair, tem dezoito anos, é modelo, e dentro em
breve estará numa revista masculina de circulação nacional exposta em todas as
bancas, peladinha, sem nada, como veio ao mundo...
- Desista. Não! Ademais, ela é sua, não minha.
- Só hoje, pai. Prometi que a levaria a um restaurante.
- E depois?
- Ainda não decidi.
- Esse é o problema, filho...
- O máximo que poderá rolar é um motel de beira de estrada. Afinal, tal
pai, tal filho...!
- Uma ova. No meu tempo não tinha essas mordomias. Ai de mim se pedisse o
automóvel a meu pai, seu avô.
- Pera lá. E se o senhor fosse junto comigo?
- Segurando vela? Acaso me acha, aos sessenta e nove anos, com cara de
castiçal?
- O senhor não coopera. Leva tudo à ferro e fogo.
- Por essa razão cheguei ao patamar em que estou. Na sua idade, dava um
duro danado para ajudar em casa. Até a limpar latrinas eu me submeti.
- Não sou nenhum vagabundo. Tenho meu trabalho.
- E o que faz com o dinheiro?
- Pago a faculdade, invisto em roupas e sapatos. O senhor nunca precisou
comprar um caderno ou um livro para mim. Bem sabe que os livros de medicina são
caros...
- Por certo, nessa parte você tem toda razão. Uma sugestão: por que não
junta, todo mês, uma quantia e dá entrada num carrinho?
- O senhor sabe que ganho pouco. Ainda que essa mixaria fosse juntada à
mesada que o senhor me direciona todo mês, não daria nem para o cheiro. Leve em
conta que não tive a mesma sorte que bateu à sua porta. De mais a mais, os
tempos mudaram. Quando o senhor tinha a minha idade... Era tudo mais fácil.
- Fácil? Fácil? Você diz fácil! No
meu tempo, filho, no meu tempo não existia uma série de coisas como televisão
em cores (olha o tamanho desta aqui e das outras dispostas nos outros quartos), não tinha computador
com tecnologia de ponta, Internet, fax, telefone sem fio, Facebook, Instagram,
Google, Linkedin, enfim...
- Cá entre nos: o senhor pode não querer dar o braço a torcer, mas no
fundo concorda comigo e sabe que tenho razão. Vamos, pai, na moral, libera uma
das “carretas!”.
- Terminantemente, não.
- O senhor não vai sair de casa esta noite.
- Eu sei...
- Tem dois belos possantes parados na garagem. Dispensa um deles!
- Dois possantes -, como você acabou de frisar -, comprados com o suor do
meu rosto. Meu jovem mancebo faça como eu: vá à luta.
- Pai, deixa de jogar as coisas na minha cara. Ei, por que não vem
comigo? Estou lhe convidando. Vamos, mamãe está viajando, só regressa na
sexta-feira.
- Não, não, não!
- Deixa de ver esse jogo chato. Seu time está perdendo, e depois não tem
nenhum programa de televisão que o senhor se amarre.
- Pensando nisso, aproveitei, passei na locadora e peguei dois filmes...
- Locadora, pai? Ainda existe esse troço?
- Não existe mais, por certo. Uns fecharam, outros faliram... Todavia...
O meu amigo Mário mantém a dele na garagem de sua casa com um acerto
considerável. E eu gosto de ver os filmes em CD.
- Meu Deus, pai... Que coisa mais retrógrada!
- Pode até ser mas eu me amarro.
- OK, pai. Gosto não se discute. O que seria do vermelho se todos
gostassem só do amarelo? Fique com seus
DVDs. Está ai um excelente motivo para jogar um dos “pés de borrachas” na minha
mão, vez que não quer ir comigo pra balada. Vai, manda a chave. Dou a minha
palavra que estarei de volta em quatro ou cinco horas.
- Você não sabe o que significa quando uma pessoa diz não? Filho, não é
não. Ene, a, o -, o... Ó com a cobrinha em cima. Sem esse sinalzinho
ortográfico a palavra se pronunciaria nao.
Diante de tantas recusas e negativas, o rapaz tristonho e cabisbaixo se
afasta em direção ao seu quarto.
Antes de subir a luxuosa escada em caracol e sumir, de vez, no corredor a
se perder de vista do segundo pavimento, olha para o velho pai numa derradeira
tentativa de demovê-lo da amuação e fazer com que abra a guarda e descole a BMW
preta ou a Mercedes vinho recém-adquiridas.
- É uma lástima...!
- O quê?
- Uma lástima, uma pena. Terei que ligar e desmarcar com a gatinha que
jantaria comigo! Não quer repensar com mais calma na ideia?
- Desista.
Inesperadamente o homem dá um salto do sofá. Desliga a televisão e encara
o filho. A sugestão inesperada do rapaz pôs um brilho novo nos olhos
carrancudos do enfático cidadão:
- Por que não disse de uma vez?
- O quê, pai...?!
- Que a sua namoradinha traria, à tiracolo, uma amiguinha?
- Eu...
- Fico pronto em cinco minutos. Tome aqui o molho das chaves. Desça até a
garagem e escolha: a BMW ou a Mercedes?
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo. 19-6-2020
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