Aparecido Raimundo de Souza
DEPOIS DE muito relutar a boa
senhora dona Gertrudes resolveu ligar para a secretária e marcar uma consulta
com seu clínico geral. No dia aprazado, lá foi ela ter com o especialista, um
pouco angustiada, ruborizada e muito, muito embaraçada e confusa:
—
Bom dia, doutor.
—
Bom dia, dona Gertrudes, quanto tempo! Estava sentindo a sua falta. A
última vez que a senhora esteve aqui o doutor Godofredo ainda gozava de boa
saúde:
—
É verdade.
—
Por favor, sente-se. O que me conta de bom?
—
Doutor, de bom... Nada. As mesmas baboseiras de sempre. Tenho, porém, um
problema novo... Nem sei por onde começar... Nessa idade, quase beirando os
oitenta e nove... Sinto um certo constrangimento e... Confesso, estou com
vergonha do senhor.
—
Que é isso, dona Gertrudes. Vergonha de mim? Tenho idade para ser seu
neto. Ademais, leve em conta um detalhe importante: sou seu médico há mais de
trinta anos.
—
Nunca esquecerei desse detalhe. Mas o senhor deve ter em mente que das
vezes anteriores os motivos eram outros e claro, não tão sérios.
—
Vamos fazer o seguinte: faça de conta que no meu lugar a senhora está
vendo seu marido, o falecido e saudoso doutor Godofredo —, que o Altíssimo o
tenha em sua santa bondade. Abra o jogo. Não pense em mim... Concentre-se...
—
Sabe o que é doutor?
—
Só saberei se a senhora me contar o que está realmente acontecendo.
—
Doutor... Misericórdia, que horror! Estou cheia de gazes.
—
Isso é natural, dona Gertrudes. Todos nós temos problemas com gases. Eu,
particularmente, minha esposa, meus filhos, minhas netas, minha secretária, até
nossos bichinhos de estimação...
—
Eu sei, eu sei, acredite doutor, não me aborrece a coisa, ou o fato em
si. Me deixa avechada a coisa. Ou melhor, as coisas...
—
As coisas?
—
Isso mesmo, doutor. E são estas coisas que me causam estranheza. Eles...
—
Eles, dona Gertrudes? Eles quem?!
—
Os traques...
—
Ah agora entendi. Claro, os traques, ou as flatulências...
—
O pior vem agora, doutor. Eles nunca cheiram.
—
Pois sim!... Isso é normal.
—
E são literalmente silenciosos.
—
Silenciosos?
—
Completamente, doutor. Não fazem barulho.
— Um bom quadro, dona Gertrudes. Um
bom quadro. Silenciosos e sem odores acres.
—
Odores o quê?
—
Perdão. Quis dizer que não exalam mau cheiro.
— Ah! Pois bem, doutor. Desde que
cheguei ao seu consultório, contando o tempo que passei na recepção —, soltei
aproximadamente uns trinta puns. Sua secretária, tão amável —, serviu várias
xícaras de café e água gelada. Coitadinha, não reclamou, nem fez cara de deboche.
Significa dizer que não sentiu nenhum cheiro esquisito nem torceu o nariz ao
ouvir minhas bufas.
— Honestamente não vejo onde reside
a sua preocupação, dona Gertrudes.
—
Vou tentar ser mais clara. Posso?
—
Por favor!
— Enquanto estou aqui a falar com o
senhor, soltei meus repolhos intestinais... Desculpe... Soltei mais uns
quarenta ventinhos. O senhor não percebeu.
Sempre sorridente o médico
prescreveu uma receita:
—
Compre estas pílulas na farmácia e tome uma de duas em duas horas
durante uma semana. Após esse prazo, retorne e marque um novo horário com a
Fabiana. Vamos ver que progresso conseguimos.
—
Fico muito agradecida, doutor. Passe bem.
Uma semana depois a velha Gertrudes
retornou ao consultório:
—
Doutor, não sei que droga me receitou. Por Nossa Senhora do Sagrado
Coração de Maria. Meus chulos, desde então, passaram a feder terrivelmente. Já
sentiu cheiro de carniça? Um horror! Não estou aguentando mais ficar perto de
mim. Parece que morri e esqueceram de me enterrar. Todavia, devo esclarecer um
detalhe importantíssimo: eles, ao menos, continuam silenciosos e comportados.
— Dona Gertrudes, graças a Deus
embrenhamos pelo caminho certo. Conseguimos curar definitivamente a sua
sinusite. Agora que vencemos esta etapa, vamos dar uma atenção maior e mais
acentuada aos seus ouvidos.
— Não entendi, doutor. Aos meus
ouvidos?
—
Sim dona Gertrudes. Vou encaminhá-la, agora mesmo, a um
otorrinolaringologista.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo. 28-8-2020
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