Roberto DaMatta e Richard
Moneygrand
Recebi ontem uma carta
assinada pelo meu amigo, o famoso embora aposentado brasilianista, Richard
Moneygrand.
Diz a missiva:
Caro DaMatta,
Aproveito o julgamento do
mensalão para manifestar o que penso como estudioso e apaixonado pelo Brasil.
Sendo um marginal relativamente ao universo brasileiro, enxergo com mais
clareza aquilo que vocês apenas veem. E ver, como dizia o nosso velho professor
Talcott Parsons, é ter uma angulação especial.
Daqui do velho Norte, onde
tudo se faz ao contrário - estou, imagine, com o meu ar-condicionado ligado ao
máximo e não sei se o meu fundo de pensão (estourado na infame bolha financeira
descontrolada por Bush e seus asseclas) vai segurar a conta - quero, data
vênia, e com o devido respeito, dar minha pobre opinião.
Primeiro, uma consideração
sobre a organização do vosso STF. Ele aposenta seus ministros após 70 anos, o
que dissocia, de modo negativo, a pessoa do papel numa área onde isso não
deveria ocorrer. Numa democracia igualitária cuja tendência é a anarquia
organizada, como dizia Clifford Geertz, os juízes são como os antigos
sacerdotes: o seu papel de julgadores do mundo não pode ser limitado pelo tempo.
Eles têm de ser juízes para a vida e por toda a vida. O papel não pode ser
esquecido e deve ser um fiel e simultaneamente uma faca permanente na cabeça de
quem o indicou e do comité legislativo que aprovou o seu nome. A vitaliciedade
tira do cargo essa bobagem brasileira de uma aposentadoria compulsória aos 70
anos o que, num mundo de idosos capazes faz com que o presidente pense muitas
vezes antes de indicar um indivíduo para esse cargo. Aquilo que é vitalício e
só pode ser abandonado pela renúncia simboliza justamente a carga do cargo. Tal
dimensão - a vitaliciedade - é mais coercitiva do que a filiação a um partido
ou a crença numa religião. É exatamente isso que, no caso americano, faz com
que ser um membro da Suprema Corte seja algo tão sério ou sagrado, tal como
ocorre com o papado ou a realeza.
Vejam como vocês são curiosos.
No campo político, os personagens e partidos menos democráticos lutam e tudo
fazem para obter a vitaliciedade no cargo - não é isso que está em jogo neste
caso? Daí as vossas ditaduras. Mas quando essa vida com e para o cargo é
positiva, vocês o limitam. O resultado são juízes cujas decisões podem ser
parciais e um tribunal sempre desfalcado, a menos que vocês decidam nomear
juvenis para um cargo tão pesado quanto uma vida.
Um outro ponto para o qual
desejo chamar atenção, pedindo desculpas se promovo em você alguma antipatia
porque, afinal de contas, eu não sou brasileiro e, para vocês, até bater em
filho e mulher é coisa que ninguém deve meter a colher - ou seja, só cabe a família;
é dizer que, aqui, os julgamentos e os processos criminais começam enormes e
acabam pequenos. O que se deseja de um juiz não é uma aula de Direito, mas uma
decisão clara, reta e curta. Culpado ou inocente. Se inocente, rua e vida. Se
culpado, as penas da lei e cadeia.
Ora, o que vemos neste vosso
julgamento é uma novela. Na minha fértil imaginação, desenvolvi uma teoria e
passei a entender por que vocês não sabem fazer cinema ou o fazem tão mal ou
tão raramente produzem um cinema de primeira qualidade. Desculpe meu intrusivo
palpite, mas eu penso que uma justiça democrática é como um filme - depois de
hora e meia, a narrativa invariavelmente termina. Mas a justiça nesse vosso
país patrimonialista e democrático é como uma novela: o caso demora décadas
para entrar em julgamento e, quando entra em cena, sofre um atraso de uma
gestação para ser resolvido. Na vossa etiqueta jurídica que, como dizia meus
mestres de Direito, reproduz as vossas retóricas sociais, é impossível não ter
uma divisão do trabalho barroco com relatores e revisores e, assim com
réplicas, tréplicas, e votos repetitivos, como se o mundo tivesse o mesmo tempo
de um Fórum Romano da época do nobre imperador Augusto.
Finalmente, e como último
ponto, quero dizer algo sobre a opinião pública, claramente desconsiderada como
inoportuna por um dos vossos juízes supremos, o dr. Lewandowski. É óbvio que
nada, a não ser a consciência e o saber, devem pautar os juízes. Mas ele não
julga para marcianos ou para o paraíso. Ele julga para o mundo e, num universo
democrático, a opinião pública representa o poder da totalidade. Uma espécie de
termômetro de tudo o que passa pela sociedade. Embora essa opinião apareça na
mídia, ela é isso mesmo: um meio complexo e difuso, sem dono e com todos os
donos, pelo qual os limites e os abusos se exprimem. Como disse, ninguém, muito
menos um juiz do Supremo deve ser pautado por ela, mas mesmo assim, ela vai
segui-lo, pautá-lo e, se for o caso, dele cobrar o que ela achar que ele deve à
sociedade. Caso o sistema tenha como algo democrático. O juiz deve ser
soberano, mas a opinião pública também tem sua soberania porque, como ensina o
Tocqueville que vocês não leram, numa democracia ela conta muito mais do que
nas aristocracias porque ela existe antes da política e vai além dela. Nas
democracias, mesmo os que não sabem se igualam aos que sabem; e, pela mesma
ousadia, os não ricos se igualam aos ricos e é por causa disso que a igualdade
aparece quando ela é desejada. Penso que esse é o caso do Brasil que vocês
vivem neste momento.
Porque o que está em
julgamento neste mensalão não é apenas um ponto de vista político no sentido
trivial da palavra, mas o valor da crença da igualdade perante a lei. O que
está em jogo é a questão de fazer política e de exercer o poder com responsabilidade
e transparência. No fundo, disputa-se o resgate de fazer política partidária
com dignidade.
Receba o meu abraço e boa
sorte para o vosso Brasil,
Dick
Título: Roberto DaMatta, O Estado de São Paulo, 29-8-2012
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