Um inquérito do Observatório Cetelem acerca das classes médias na Europa apurou que,
bastante acima da opinião genérica europeia, quase 40% dos portugueses
consideram viver pior do que viviam os seus pais. Ou os portugueses em causa
são todos filhos de pais com 45 anos, no máximo (o que é improvável: o
inquérito destinava-se a maiores de 18) ou uma percentagem extraordinária de
cidadãos desfrutava há duas ou três décadas de um conforto de que ninguém,
incluindo os próprios, suspeitava. Ou, afinal, a “geração mais qualificada de
sempre”, garantidamente a responsável pelas lamúrias, não sabe o que diz.
Uma coisa é sentir os apertos vigentes. Outra
coisa é convencermo-nos de que nunca nenhuma geração sofreu o que os sujeitos
que andam pelos 20 ou 30 anos sofrem. Embora seja útil, nem vale a penar
recorrer ao Pordata para confrontar o atual consumo das famílias com o de 1960. Ou como o de
1980. Ou, nalgumas matérias, como o de 2000. A memória da penúria, direta ou
transmitida, deveria bastar. E se a amnésia for incurável, o facto de milhares
de jovens adultos desabafarem as suas desditas no Facebook, meio que pressupõe
o pagamento regular da Internet e a posse de um computador (ou de um Tablet, ou de um Smartphone) já aponta umas luzes sobre a intensidade das desditas
de que se queixam tantos dos que se queixam.
Estes excessos são compreensíveis quando se acha
que o mundo começou ontem, e se ignora que anteontem vigorava uma pobreza tão
vasta e tão velha quanto o País. O meu avô materno foi gerente de uma das maiores
fábricas alimentares nacionais e jamais comprou carro, telefone, televisão a
cores ou máquina de lavar roupa. O meu avô paterno inscreveu-se na tropa com 15
anos e uma mentira para fugir da fome. A mãe deste avô partiu rumo ao Brasil a
fim de vender tapetes na rua. Uma trisavó materna pedia esmola à porta da
igreja. Uma bisavó materna era operária fabril e analfabeta. Em quatro avós, só
uma frequentou o liceu e só os homens concluíram a primária. Chega?
Não chega? Os meus pais cresceram sem um brinquedo. O meu pai, que acabou por concluir uma licenciatura, trabalhou em rapazola como varredor no Porto de Leixões. A minha mãe, que ficou a um triz de concluir a licenciatura e não precisou de trabalhar em adolescente, nasceu numa “ilha” asseada, onde a família dela alimentava por caridade um vizinho que se tornaria ministro da Justiça e da Defesa. Eu nasci num T2 pequenino e, imaginem o tormento, cresci sem telemóvel, televisão (salvo um canal sem salvação), PlayStation, festivais de música, viagens de escola, ligação à Rede e iPod. Apesar disso, tenho a noção dos imensos privilégios de que beneficiei. Às vezes, tenho até uma espécie de vergonha, ou um respeito melancólico por aqueles cuja existência determinou a minha à custa de sacrifícios que mal consigo conceber.
É esse respeito que falta a quem se julga vítima
de uma conspiração preparada exclusivamente para si e se esquece que, antes da
abundância enganadora dos fundos, as classes médias indígenas lutavam para
sobreviver e com frequência perdiam. Não me passa pela cabeça disfarçar a
gravidade da situação, aliás particularmente grave entre pessoas de meia-idade,
em inúmeros casos amputadas do passado e sem razões de esperança no futuro. Mas
não resolve nada a presunção de que as dificuldades começaram agora, justamente
para atingir os que agora começam as suas vidas. Os progenitores destes penaram
muito mais e queixaram-se muito menos. De resto, tal como desprezar a iminência
da crise não a impediu de se instalar, exagerar a sua singularidade não a persuadirá
a partir.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, revista Sábado, nº 441, de 11 a 17-10-2012
Digitação e Edição: JP
Digitação e Edição: JP
Ainda bem que se recorda do XIV Governo Constitucional, era Primeiro-Ministro, o Socialista António Guterres. Onze anos depois, também eram os socialistas que governavam Portugal quando pediram ajuda externa. Ajuda quer dizer dinheiro.
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