Há muitas formas de tentar
rebaixar a posse do ministro Joaquim Barbosa na presidência do Supremo Tribunal
Federal, e a mais saliente delas, embora menos assumida, é declarar que “um
negro”, finalmente, atinge o topo. Errado! Chegou ao STF e estará no comando,
por dois anos, um brasileiro que estudou e que tem formação intelectual e
acadêmica compatível com o cargo. Sim, ele é também negro, mas o ser negro é uma
das suas características e não o define no cargo. Afinal, há milhões de outros
que não poderiam estar lá porque não exibem as suas credenciais.
Negros, brancos, amarelos,
vermelhos, homens, mulheres, sulistas, nordestinos, gays, héteros, judeus,
cristãos, muçulmanos, corintianos, petistas, antipetistas — escolham aí
categorias à vontade… Nenhuma delas pode ter uma “vaga” na corte suprema do
país porque o tribunal não é uma soma de corporações de ofício, de corporações
ideológicas, de corporações de gênero, de corporações de cor, de corporações
partidárias… Fosse assim, haveríamos de ter tantos ministros quantas fossem as
clivagens naturais da sociedade — ou as criadas por grupos militantes. Por isso
reagi mal quando Ophir Cavalcante, presidente da OAB, viu na posse de Barbosa a
suposta expressão do multiculturalismo. Errado! Se a questão é essa, trata-se
justamente do contrário: a posse de Barbosa é a expressão do “uniculturalismo”:
a democracia!
Multiculturalismo? Ora, quais
são os valores particulares do ministro — pertencentes, então, à sua
“comunidade” — que nos seriam (a muitos de nós ao menos) estranhos? Desconheço.
O seu currículo e a sua formação intelectual nos informam tratar-se de um homem
formado pela cultura ocidental. Barbosa não fala swahili, mas fala francês. Não
fala kinyarwanda, mas fala inglês. Não fala tumbuka, mas fala alemão. Não fala
quicongo, mas fala espanhol. Não fala quimbundo, mas fala português.
Não sei se é ou não homem
religioso, mas não o vejo praticando cultos animistas. Barbosa é um negro
nascido e criado no Brasil e, nota-se pela trajetória, ganhou projeção por seu
esforço. É a evidência, aliás — contra as suas próprias convicções, já que
favorável a cotas (como os demais ministros do STF, diga-se) —, de que não
existe melhor política afirmativa do que a da dedicação e do talento. “Ah, mas
quantos poderiam repetir a sua experiência? Precisamos de medidas inclusivas”.
Claro que precisamos! A melhor delas é garantir ao conjunto dos brasileiros uma
escola pública decente. Mas não quero, agora, entrar nesse atalho porque a
coisa iria longe.
Estou, sim, repudiando certo
deslumbramento basbaque — que cheira a avesso do avesso do racismo… — que
pretende conferir a Joaquim Barbosa características especiais porque negro.
Parece até que a cor de sua pele o torna, então, menos livre para pensar, já
que tal condição lhe imporia, de saída, um conteúdo.
É claro que reconheço a
importância que sua ascensão tem para milhões de negros e mestiços Brasil
afora. Aliás, o fato não é menos relevante para muitos brancos. Eis a
evidência, concorde-se ou não com o ministro (e eu já discordei dele e de
outros muitas vezes), de que o desempenho intelectual não distingue cor de
pele. Sim, em certos nichos do país, essa é uma verdade que ainda precisa ser
enunciada e anunciada. Que meninas e meninos negros Brasil afora o tenham como
exemplo de que o esforço faz diferença. É também o que espero que aconteça com
meninas e meninos brancos.
Joaquim Barbosa na presidência
do Supremo não significa o triunfo dos “valores negros” ou da “cultura negra”
porque essa história de “Mama África” é só conversa mole de ignorantes. Negros
matam negros aos milhares — às vezes, milhões — na África subsaariana. A razão
é simples: não existe uma “cultura negra”. Existem culturas — e elas podem ser
mortalmente inimigas. Cor da pele só forja uma identidade (falsa!) fora do
continente africano. Não custa lembrar: muçulmanos matam muçulmanos no Oriente
Médio, e brancos matavam brancos até outro dia na Irlanda do Norte.
Barbosa é a expressão dos
valores da democracia ocidental, que admite a pluralidade — à diferença dos
negros, muçulmanos e brancos que se matam uns aos outros. O multiculturalismo
se nega a admitir que existe, sim, uma hierarquia valorativa de culturas
fundada nas liberdades públicas, nos direitos individuais, na livre expressão
do pensamento, no direito à organização, na garantia à inviolabilidade do corpo
— na democracia, enfim. Considerar aceitáveis e toleráveis padrões culturais
que renegam esses fundamentos significa dar o próprio pescoço à corda. Afinal,
se o pretexto do multiculturalismo é abrigar a diferença, como incluir os que,
em nome de seus valores, pretendem eliminá-las?
Eu assisti anteontem à posse de um
homem formado pela democracia ocidental e que tem a pele preta. Acho saudável e
desejável que artistas e personalidades negros tenham comparecido à solenidade,
especialmente num momento em que Barbosa se torna o alvo principal do petismo e
de seus esbirros na imprensa. Noto, e estou certo de que vocês já o perceberam,
que o ministro é hoje um dos homens mais admirados do Brasil. Transformou-se
numa espécie de voz contra a impunidade — papel que poderia ter sido encarnado
por qualquer outro ministro que, na condição de relator, tivesse atuado com a
sua firmeza. Existem, sim, manifestações racistas no Brasil. Recentemente, o
jornalista Heraldo Pereira — que não seria menos brilhante se branco ou japonês
— foi alvo de uma ignomínia vocalizada pelo mundo das sombras a soldo. Mas este
é também um país que preza a competência, pouco importa a cor da pele. É uma
tolice querer importar padrões de luta racial que, de fato, negam a nossa
própria história.
É fato, por exemplo, que
Barbosa não é o primeiro negro a integrar o Supremo Tribunal Federal. Antes
dele, houve Pedro Augusto Carneiro Lessa e Hermenegildo Rodrigues de Barros,
nomeados, respectivamente, em 1907 e em 1919. Ambos ocuparam papel de destaque
na corte, mormente o segundo, conforme nos conta o site do STF: “Coube-lhe
presidir, por força do Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, que
instituiu o Código Eleitoral, a instalação do Tribunal Superior de Justiça
Eleitoral, em 20 de maio do mesmo ano. Posteriormente a Constituição de 1934,
no art. 82, § 1º, ao dispor sobre a matéria, estabeleceu que a Presidência do
Tribunal caberia ao Vice-Presidente da Corte Suprema, pelo que continuou
dirigindo-o, até ser extinto com o advento da Constituição de 1937. Presidiu,
nessa qualidade, as sessões preparatórias da Assembleia Nacional Constituinte,
em 1933 e 1935.”
Machado de Assis, um mestiço —
“negro”, segundo a linguagem militantes destes dias —, não se tornou o nosso
maior escritor só depois de morto. Não! Viveu a glória do reconhecimento em
vida. O mesmo se deu com o abolicionista e engenheiro André Rebouças. As
crianças brasileiras, brancas, mestiças ou pretas, precisam é de uma escola que
lhes permita desenvolver seus respectivos talentos, que lhes forneçam os
instrumentos para seguir adiante.
E termino com uma provocação —
à inteligência: a política de cotas raciais caminha na exata contramão dessa
política de universalização da qualidade. Trata-se de mera ação compensatória
para tentar corrigir os desastres da escola pública — condenados, então, a se
eternizar.
Pense nisso, ministro Joaquim
Barbosa!
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 24-11-2012
OPERAÇÃO DA PF ATINGE AGU E CANDIDATO AO STF
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Abraço, Jim
Liane