quarta-feira, 14 de maio de 2014

A realidade no banco dos réus

Alberto Gonçalves

Lembro-me de imensos especialistas que, enquanto salivavam de expectativa “alertavam” o país para o aumento da criminalidade decorrente da crise. Não os vejo tão entusiasmados agora, quando saiu o Relatório Anual da Segurança Interna. De acordo com o RASI, os crimes em geral desceram 6,9% de 2012 para 2103. Os crimes violentos e graves desceram 9,5% no mesmo período. Desde 2004 que os dados absolutos não eram tão baixos. Se admitirmos que há hoje um número maior de portugueses a viver com dificuldades, o que é em si mesmo discutível, fica pela enésima vez provado que um desempregado recente ou de longa data não é obrigado a encontrar a única saída no esticão ou no assalto à mão armada.

Fica pela enésima vez provado que os especialistas não sabem o que dizem. Nem o que deviam dizer.

Se soubessem, estariam conscientes de que, pelo menos no Ocidente, o crime – à semelhança da dependência de narcóticos e outros “desvios” sociais – costuma andar um bocadinho associado a fases de prosperidade. Podia citar o clásico exemplo americano, onde a criminalidade, violenta ou meiguinha, cresceu mais ou menos em simultâneo ao crescimento econômico das décadas de 1960 e de 1970 (e vem diminuindo durante os últimos anos, assaz traumatizados por “bolhas”, bailouts e Bin Laden).

Para não irmos longe, limito-me ao exemplo nacional: por cá, o “pico” na quantidade de crimes registados coincide com o ano 2008, época em que éramos ricos e felizes. Em 1980, o total de aguidos representava 30% do total de 2012 (e quase 20% do de 2008). É esquisito? Se calhar, sim, mas nunca ninguém conseguiu garantir que a vida fosse linear e trivial.

Excepto, claro, os especialistas (e comentadores), para quem tudo se encaixa impecavelmente nas categorias que estruturam as suas cabeças. Os ricos roubam motivados pela cobiça e porque são geneticamente perversos (sentença: crime malvado/intolerável). Os pobres roubam motivados pela necessidade e porque são evidentemente oprimidos (sentença: crime compreensível/desejável).

Honestos, só os especialistas (e comentadores), que disparam profecias sem que a realidade, essa ingrata, lhes dê a devida importância. É um crime.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, nº 518, de 3 a 9 de abril de 2014

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