Paulo Tunhas
Confesso que quando leio ou
ouço propósitos sobre a necessidade do “aprofundamento” (horrível expressão) da
construção europeia, o que sinto é medo, medo das consequências péssimas que
daí podem advir
Não sou historiador, nem
economista, nem nunca tirei curso algum sobre a chamada “construção europeia”.
O que, em princípio, me aconselha alguma prudência em matéria de opiniões
próprias sobre a evolução da União Europeia. E tento ter a tal prudência. Para
mais, embirro com argumentos dialécticos, no sentido particular de argumentos
suportando visões muito gerais (“fim da história”, etc.) que não são
verdadeiramente susceptíveis de análise. Mas confesso que, quando leio ou ouço
propósitos sobre a necessidade do “aprofundamento” (horrível expressão) da
construção europeia, o que sinto é medo, medo das consequências péssimas que
daí podem advir. Porque me parece que esses propósitos, belos e puros que
sejam, ignoram o grosso dos ensinamentos empíricos dos últimos anos.
Tome-se, por exemplo, a carta
aberta aos presidentes da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu, do Conselho
Europeu, do Banco Central Europeu e do Eurogrupo, subscrita por Vítor Bento e
vária outra gente. Nela se defende, entre outras coisas, “a criação de uniões
bancária, orçamental, económica e política”, e se pede “uma visão clara e
ambiciosa para o futuro da Europa”. Não se seguir esse caminho conduziria,
quase fatalmente, ao declínio europeu e ao aumento do populismo, do
nacionalismo e da xenofobia. Estes propósitos, é claro, são tudo menos
originais. De facto, são mesmo uma espécie de ortodoxia no contexto das discussões
sobre a União Europeia. Para utilizar a metáfora de Delors, a bicicleta deve
andar cada vez mais depressa.
Porque é que isto me parece
arriscadíssimo e contrário à boa política? Porque a ideia de uma cada vez maior
unidade e de uma quase fusão dos povos europeus por ela implicada é algo ao
qual a realidade resiste com todas as suas forças. E, entre vários outros
pontos que conviria desenvolver, o populismo, o nacionalismo e a xenofobia são
em grande medida, no presente contexto, o resultado de uma já excessiva unidade
e não o produto de um seu insuficiente “aprofundamento”. Mais “aprofundamento”
traria consigo, quase de certeza, mais nacionalismo, populismo, etc. Alguém
ouviu falar do Podemos e do Syriza? Uma grande fuga para a frente faria com que
o Podemos e o Syriza parecessem brincadeiras de meninos de coro.
O que é que leva os adeptos do
“aprofundamento” a suporem que, como resultado do dito, os nacionalismos e
outros pecados afins tenderiam a desaparecer? Não se vislumbra – eu, pelo
menos, não vislumbro – nenhum argumento substantivo. Tal suposição parece
resultar mais de um acto de fé do que de outra coisa. O mais que se consegue
ver é uma convicção, profunda na fé e superficial na substância, segundo a qual
o que é perfeito – como uma União Europeia devidamente “aprofundada”
inevitavelmente seria – por si mesmo resolveria todos os problemas e não
deixaria margem para o erro, o desvario e as manifestações sortidas do mal em
geral.
Mas é muito mais lícito e
sensato julgar que os nacionalismos reaparecentes são em grande medida o
produto da percepção que os povos têm da falta de soberania dos seus Estados. A
inimizade política e a atribuição de “caracteres” aos povos (os gregos são
isto, os finlandeses aquilo, os alemães aqueloutro), algo que se tornou o pão
nosso de cada dia nas actuais discussões europeias, são bem o resultado desse
movimento geral para a integração que tende a anular a possibilidade de
deliberações substantivas nos vários Estados europeus. E a situação de
fragilidade interna de muitos governos europeus é também ela consequência dessa
perda de soberania. Convém sempre lembrar a lição básica dos grandes teóricos
da soberania, como, por exemplo, Hobbes. A perda, tendencial ou efectiva, da
soberania externa dos Estados repercute-se numa perda da sua soberania interna,
que se manifesta, entre outras coisas, numa crise da representação.
Claro que os adeptos do
“aprofundamento” são cegos a este facto tão palpável. E em primeiro lugar pelo
utopismo que subjaz à sua posição. O utopismo funda-se na ideia de uma
perfeição que, pelos seus tão evidentes méritos, conteria em si mesma o
princípio da sua necessária passagem à existência. E a sua passagem à
existência conduziria, sem falhas, a uma definitiva resolução das várias
agruras e atribulações do nosso rugoso mundo real. A energia de crença
necessária para que tal convicção exista é enorme, mas ela encontra-se sempre
disponível na cabeça das pessoas. E os adeptos do “aprofundamento” estão longe,
nesta matéria, de qualquer excepcionalidade. O problema é que as utopias – a
quase única excepção é a utopia do trabalho científico cooperativo, formulada
por Francis Bacon no início do século XVII – tendem declaradamente a acabar
mal. Algumas, muitas, muito mal.
A historiadora americana
Barbara W. Tuchman publicou, em 1984, um livro admirável, cujo título roubei
para este artigo, The March of Folly. Nele analisa vários modos como os Estados
prosseguem políticas contrárias ao seu interesse próprio. O arquétipo dessas
políticas é o dos troianos, que conduzem o cavalo de madeira dos gregos para o
interior das suas muralhas. No que me toca, sou tudo menos anti-europeísta e
estou até longe de acreditar que o euro, com todas as suas deficiências, seja
algo a forçosamente abandonar. Mas o movimento utópico daqueles para quem a
bicicleta de Delors deve acelerar a sua marcha a velocidades loucas faz medo,
por mais simpáticas e sapientes que sejam as pessoas que pensam que assim deve
ser.
A cura para as presentes
maleitas não pode estar aí. Porque os efeitos secundários que produz –
inimizades e nacionalismos – arriscam-se a ser fatais. Mas se calhar é por aí
mesmo que, para nosso mal, vamos. Barbara Tuchman explica porquê: “Aprender com
a experiência é uma faculdade quase nunca praticada”. E: “Uma política fundada
sobre o erro multiplica-se, nunca volta atrás. Quanto maior é o investimento e
quanto mais envolvido nele se encontra o ego do seu promotor, mais inaceitável
é a desistência”. Ora, o investimento é sem dúvida grande e para muita gente a
coisa tornou-se quase uma razão para a vida. Vamos precisar de ter sorte.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
25-6-2015
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