Maria de Fátima Bonifácio
É verdade que os gregos
votaram pelo fim da austeridade, mas o Syrisa – se ganhar o referendo – irá
impor-lhes não só os mesmos ou piores rigores, mas ainda uma revolução que
nunca lhe foi encomendada
Em 25 de Janeiro último, o
Syrisa ganhou as eleições gregas graças a uma chusma de promessas delirantes,
em que qualquer adulto normalmente constituído via de imediato uma lista de
impossíveis. Eram promessas maravilhosas: não se pagava a dívida, acabava-se a
austeridade, e o povo grego continuava a desfrutar da vida aconchegada a que se
habituara desde que os euros tinham começado a regar as terras da antiga
Hélade. Mais de 30% dos gregos acreditou neste “conto de crianças”, o
suficiente para que a coligação de extrema-esquerda denominada Syrisa,
acolitada por um pequeno partido de extrema-direita nacionalista, chegasse ao
poder. A factura – pois o bôdo prometido custava muitos milhares de milhões –
essa pagava-a Europa, quer dizer, os contribuintes europeus, pois até o
dinheiro de Bruxelas terá de vir de algum lado, que só pode ser os nossos
bolsos.
Muita gente se interrogou como
era possível que um povo com tão ilustre ancestralidade – apesar da
miscigenação ocorrida ao longo dos vários séculos de ocupação turca – se
deixasse iludir tão entusiástica e facilmente. Proliferaram as teses sobre este
mistério. A mais razoável sustentava que a violência da austeridade imposta pela
impiedade europeia causara tal miséria e sofrimento, que muitos gregos,
esgotada toda a esperança, se convenceram de que já nada, mas nada, tinham a
perder. A miséria e o sofrimento são um facto que não oferece dúvida. Mas entre
as muitas lições que se podem tirar da experiência grega, uma delas é que os
gregos estavam enganados. A Grécia de hoje, mais exaurida e empobrecida, indica
que, afinal, ainda havia alguma coisa a perder e portanto a conservar. O
Syrisa, como agora ficámos a perceber, optou deliberada e premeditadamente por
lançar fogo à casa e mandar tudo borda fora (ver o importante artigo de Teresa
de Sousa no Público, 28.6.15). Durante os últimos cinco meses, o Syrisa
dedicou-se a um exercício de cinismo que faz de Maquiavel uma alma cândida.
De facto, muita coisa se
estranhava nos modos e métodos de negociar da delegação grega que se apresentou
em Bruxelas, a começar pelos do seu chefe, o ministro das Finanças, Yanis
Varoufakis. Um tipo giro e bem apessoado, que em Atenas se desloca para o ministério
numa moto potente e espalhafatosa, e cuja mulher, uma artista plástica,
aproveitou logo a súbita notoriedade do marido para exibir em Madrid os seus
maravilhosos artefactos. A dupla era encantadora. As fotografias tiradas pela
Paris Match na sua varanda com vista para a Acrópole, comoviam pela alegre
simplicidade e notória felicidade de um casal que seguia amando-se à margem do
turbilhão político em que a Grécia já então estava mergulhada. É verdade que a
exibição pública da intimidade conjugal contrariava o tradicional dever de
modéstia e discrição revolucionária. Mas esta era gente moderna, também não
falava em capital, nem em exploração capitalista, nem em classes sociais, nem
em luta de classes, e menos ainda em vanguarda operária. Falava, muito sucintamente,
em nome do “povo”, solidário e uno na rejeição da austeridade feroz imposta
pela “Europa”.
Varoufakis aterrou na primeira
reunião do Eurogrupo de rompante e com espalhafato. Optou pela arrogância e
provocação, fiado, por certo, no infalível trunfo da chantagem: ou as
“instituições” cedem, ou a Grécia sai do Euro, primeiro acto de uma tragédia
conducente em linha recta à fatal ruína da União. Ninguém se impressionou ou
intimidou por aí além. Nos primeiros tempos, Varoufakis e Tsipras puderam contar
com a condescendência dos parceiros do Eurogrupo e o entusiasmo das esquerdas
europeias. O da nossa não ficou atrás de ninguém: recorde-se a generalizada
esperança do PS e a ridícula carta aberta em que Rui Tavares, pelo Livre e
adjacências, prometia para muito breve o envio de novos Albuquerques lusitanos
para ajudar a luta titânica que os valentes gregos travavam na vanguarda.
À medida que o ritmo dos
“trabalhos técnicos” aumentava sem proveito, e que as reuniões do Eurogrupo se
multiplicavam sem sucesso, a condescendência e a paciência foram-se esgotando.
Renzi deixou de sorrir. O próprio Hollande torceu o nariz. E até Juncker se
deixou de palmadinhas na face do amigo Yanis e acabou por amuar. Só Angela
Merkel, a figura mais demonizada durante todo este longo processo, só a pérfida
chanceler, ávida de engrandecer o nefasto poderio alemão, não baixou os braços
no último momento, procurando ainda forçar uma 25ª hora: as partes estavam já
muito próximas (El País, 28.6.15, “Abortar la negociácion”) e que se fizesse um derradeiro
esforço (Observador, 28.6.15). Mas ao findar a 24ª hora, Tsipras mandou parar
tudo: o governo grego decidira submeter a proposta de acordo oferecida pela
Europa a um referendo, marcado para 5 de Julho.
Perante esta ruptura
unilateral das negociações, Merkel teve de se inclinar. E desde então as suas
noites devem ter piorado. Não a pensar no Euro, não a pensar nos bancos e na
Finança, nem sequer a pensar no contribuinte alemão. Com uma leviandade que
causa espanto, Soromenho Marques estabeleceu entre a chanceler e o Kaiser
Guilherme II uma hilariante comparação. Ao contrário do que sugere, o Kaiser
pensou e tornou a pensar no Plano Schlieffen. Aliás, de 1890 a 1914, Guilherme
II, um verdadeiro nazi avant la lettre, não pensou noutra coisa a
não ser em arranjar maneira de provocar uma Guerra Mundial, e por isso mesmo
entrou em rota de colisão com Bismarck, que naquele ano tratou de se demitir (C.
Clark, em The Sleepwalkers, 2013, omite fontes. Cf. J.C.G. Roehl, Kaiser
Wilhelm II, 2014).
Angela Merkel está nas
antípodas de Guilherme II. As suas insónias devem-se à ponderação de que a
Grécia, independentemente da irresponsabilidade de governantes e governados,
constitui a última fronteira não apenas da Europa, como também do Ocidente. Ou
seja, perdida a Grécia, não são os problemas económicos e financeiros que metem
medo – a Grécia representa uns meros 2% do PIB europeu. Neste domínio, há
evidentemente motivo para justificada preocupação; esta manhã, o euro já dera
uma queda. Mas a inevitável turbulência económico-financeira não se reveste da
gravidade, perigosidade e dificuldade que representa o desmoronamento da última
fronteira que protege a Europa das convulsões que já transbordam do seu leito
no Próximo e Médio Oriente, bem como das que se encontram em gestação na região
balcânica, onde Putin não desistirá de implantar a influência da velha Rússia
imperial que aspira a recriar. Em suma, a saída da Grécia do Euro, prelúdio
para a saída da “Europa”, coloca a esta (e à NATO, e portanto aos EUA) um
tremendo quebra-cabeças geo-estratégico (ver artigo exemplar de J.A.Fernandes, Público, 28.6.15).
Escrevi logo em Fevereiro que
as teorias revolucionárias do Syrisa eram pós-marxistas e pós-leninistas (mas
algo gramscianas). O seu mestre, ou um dos seus mestres, certamente o principal,
chama-se Ernesto Laclau, um filósofo e docente universitário em Londres,
falecido há dois anos. Dei-me ao trabalho de ler minuciosamente o seu livro que
para o caso grego mais directamente importa: On Populist Reason (2005).
Na impossibilidade de o resumir aqui – é complexo e teoricamente sofisticado –,
aconselho a leitura a quem já tenha percebido que, no contexto da globalização
e perante o desaparecimento do operariado tradicional e o aburguesamento do que
dele sobra, uma teoria revolucionária moderna tem que assentar numa capacidade
de mobilização interclassista que supere interesses particularistas
contraditórios ou concorrentes. O Capital sumiu-se pelos cabos e interstícios
de milhões de computadores instalados em arranha-céus, que num abrir e fechar
de olhos comunicam entre si através do planeta. A nova mobilização
revolucionária consistirá então, segundo Laclau, na possibilidade de aparecer
uma palavra – um significante – “vazio”, i.e., desprovido de significado
concreto e preciso, e que precisamente pela circunstância desta disjunção se
presta a ser apropriado por todos e qualquer um, que nele projectam as suas
mais diversas queixas ou reivindicações. Esta amálgama de significações
associadas a uma palavra (ou algumas, mas poucas), adquire a hegemonia
discursiva que permite mobilizar multidões heterogéneas, mas unificadas por
esta espécie de passe de mágica linguístico.
Acontece que na Grécia não há
uma oligarquia corrupta que pudesse ser construída como um inimigo comum e
absoluto, pelo simples motivo de que a sociedade grega é corrupta de alto a
baixo, do porteiro de prédio ao armador de navios. A palavra de eleição foi,
então, “austeridade”, e tudo, desde a incompetência mais notória aos azares
mais casuais, passando pela inesgotável variedade das frustrações pessoais,
passou a ser imputado à austeridade. Por aqui deveria passar a fronteira do
antagonismo irredutível entre a parte e o todo. Ora a austeridade – conforme
pensa o vulgo – não é mais do que um capricho ideológico imposto pela Europa neoliberal,
que logicamente deveria ser envolvida no mesmo manto de rejeição. Mas não foi!
E não é ainda agora! Os gregos desejam duas coisas incompatíveis: permanecer no
euro e na Europa, mas sem “austeridade”. O Syrisa mentiu-lhes descaradamente ao
prometer ambas as coisas em simultâneo. Foi a maneira elegante de chegar ao
poder.
Quando, na última reunião do
Eurogrupo, os Tsipras e Varoufakis perceberam que talvez estivessem à beira de
um acordo irrecusável, cuja rejeição demonstraria pura má-fé, Tsipras manda
abortar as negociações, anunciando que vai referendar a última proposta em cima
da mesa. Logicamente, acabou logo tudo ali, incluindo a eventual extensão do
programa em curso por mais um mês. Com efeito, de que servia negociar se a
vontade do povo grego poderia sempre, em referendo, anular o que os parceiros
tivessem acordado?
A responsabilidade pelo abismo
sobre cujas bordas a Grécia vacila foi miseravelmente trespassada pelo Syrisa
para o povo, algo que Varoufakis apenas há um mês qualificou de “crueldade”.
Não sei se é cruel ou deixa de ser. Sei que os gregos foram armadilhados. E
pouco ou nada importa saber se foi a extrema-esquerda que impôs a Tsipras esta
traição. A verdade é que, desde o princípio, os gregos votaram pelo fim da
“austeridade”, mas o Syrisa – se ganhar o referendo – irá impor-lhes não só os
mesmos ou piores rigores, mas ainda uma revolução – que nunca lhe foi
encomendada. Não sei porquê, mas já ontem me vieram à ideia uns coronéis.
Título e Texto: Maria de Fátima Bonifácio, Observador, 30-6-2015
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