Alexandre Homem Cristo
O propósito do referendo é
legitimar o Syriza. Seja pela ruptura com o Euro, seja pela cedência a um
acordo, do qual Tsipras lavaria as mãos. Chamem-lhe estratégia, mas não é mais
do que uma fraude
Deixo para outros o comentário
às muitas implicações económicas, bancárias e negociais do anúncio do referendo
na Grécia. Foco-me antes na dimensão política da opção de Tsipras, que é o
aspecto essencial e que está na raiz de tudo o resto. E, falando com clareza, o
que está na raiz do anunciado referendo (sim ou não ao acordo com os credores)
é uma fraude democrática.
É fácil vender a ideia
romântica de referendo como iniciativa exemplarmente democrática, em que ao
povo é dada liberdade de opções e capacidade para decidir. Foi essa ilusão que
Tsipras apresentou quando anunciou o referendo, elevando-se a si e ao seu
partido como paladinos da democracia. Nada de novo. Por um lado, Tsipras sempre
nos quis convencer do contra-senso de que liderava uma batalha pela democracia
contra todos os 18 outros membros do Eurogrupo. Por outro, a esquerda é, por
tradição, perita em vender ilusões perigosas em nome de valores que pretendemos
universais, como a igualdade, a liberdade ou a justiça.
Só que a realidade é sempre
bem diferente, muito mais cinzenta e muito menos democrática. Com Tsipras, não
foi excepção: o único propósito do referendo é legitimar o projecto político do
Syriza. Seja pela desejada ruptura com a zona Euro, ameaçando a legitimidade
das instituições europeias. Seja pela cedência a um acordo com os credores, do
qual Tsipras e Varoufakis lavariam as mãos de responsabilidades. Chamem-lhe
estratégia política, se quiserem. Mas, no fundo, não é mais do que a
instrumentalização do povo grego. E é, por uma série de razões, uma fraude de
todo o tamanho.
O programa de assistência
termina amanhã, terça-feira. Nesse dia, acaba-se tudo, a começar pela paciência
e o dinheiro. Convocar um referendo para dia 5 de Julho, domingo, é portanto
uma intrujice, visto tudo já estar (na prática) decidido. A ruptura com as
instituições internacionais está em marcha, os bancos estão encerrados e a
Grécia vive à beira da bancarrota. Durante o fim de semana, as filas nos
multibancos, supermercados e estações de abastecimento de combustível dominaram
as paisagens gregas. Até domingo, após seis meses de destruição da situação
financeira da Grécia, o que fica realmente para referendar?
Obviamente, muito pouco. É por
isso que o referendo representa uma tentativa inaceitável de desresponsabilização
de Tsipras e Syriza perante as decisões negociais que tomaram e que pioraram
dramaticamente a situação da Grécia nos últimos meses. E que, agora, muito
provavelmente conduzirão o país a uma catástrofe. Encurralado entre promessas
eleitorais que nunca poderia cumprir (o referendo é um reconhecimento indirecto
dessa incapacidade) e a iminente saída da zona Euro caso não alcançasse acordo
com os credores, o Syriza (e Tsipras em particular) decidiu ilibar-se de
responsabilidades. É de uma cobardia inqualificável. Mas é também a única forma
de o Syriza assistir ao descalabro da Grécia sem contrariar o seu próprio
discurso e uma última tentativa de legitimar o seu plano de ruptura com o Euro.
Tsipras já só tem a ganhar, os gregos ainda têm muito a perder.
A fraude não é só táctica, é
também institucional. Um referendo visa sondar a vontade popular sobre uma
determinada matéria, o que requer tempo, clareza entre as opções, debate
público participado e um esclarecimento da população sobre o que está em causa
em ambos os lados. Ora, quem convoca um referendo assim, de uma semana para a
outra, não está interessado no esclarecimento da população – apenas na sua
manipulação. É inimaginável que os gregos pudessem, daqui a uma semana, decidir
conscientemente sobre uma matéria de tal modo complexa que tem justificado o
arrastar de negociações durante meses. Tal como é inimaginável que conheçam bem
as consequências das suas escolhas, em particular sobre a sua permanência no
Euro (se soubessem não tinham votado no Syriza). Aliás, há consequências do
referendo que nem sequer são perceptíveis: se o “sim” ao acordo com os credores
ganhar, que proposta é realmente aplicada, e até que ponto um governo Syriza a
quererá e irá aplicar? Desculpem, mas um referendo não é isto.
Enfim, parece que estamos
perto do fim deste episódio que tem tudo para ser trágico. Podemos lamentar o
desfecho. Podemos ainda ter esperança que, realizando-se o referendo, este
sirva para passar uma mensagem de rejeição às opções do Syriza e que,
eventualmente, isso force eleições antecipadas, das quais Tsipras não saia
vencedor. Ou, dito de outro modo, podemos ter esperança de que ainda há
esperança.
O que não podemos é
fingirmo-nos surpreendidos, até porque a fraude democrática do Syriza não data
deste anúncio de referendo. Começou muito antes, ainda na campanha eleitoral,
quando Tsipras se propôs romper com as chamadas políticas de austeridade e,
apesar disso, manter a Grécia no Euro financiada pelos credores. E continuou
durante meses, entre visitas à Rússia e ameaças às instituições internacionais.
O Syriza foi, desde o início, um projecto político cuja ambição revolucionária
consistiu na ruptura, leia-se estatelar-se a toda a velocidade contra a parede.
Está a conseguir, e só não anteviu quem não quis. Infelizmente, nos jornais e
na nossa esquerda política, foram muitos os que fecharam os olhos. Pior ainda,
foram muitos os que aplaudiram.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador,
30-6-2015
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