O equívoco grego: o Syriza não
recusa um acordo, recusa o nosso modo de vida na União Europeia
José Manuel Fernandes
Há um equívoco na crise grega:
a ideia de que o Syriza só quer acabar com a austeridade. Antes fosse assim. O
seu radicalismo e "linhas vermelhas" têm muito mais a ver com o mito
da "luta de classes".
Jean-Claude Juncker, com
aquela maladresse que lhe é tão própria, confessou esta semana à revista alemã Der Spiegel que “não
conseguia compreender Tsipras”. Devo dizer que não me surpreende. O
primeiro-ministro grego não tem as mesmas motivações nem o mesmo quadro de
referências não apenas de Juncker, mas de todos os que, da direita democrática
à esquerda social-democrata, construíram a Europa nos últimos 60 anos. O seu
mundo é outro, e não apenas por ser grego, pois o que Tsipras fez toda a vida
foi combater o modelo económico, social e político da União Europeia.
Como às vezes sucede na
história das nações, há figuras políticas que pareciam destinadas a nunca
ultrapassarem a condição de serem apenas vozes incómodas, ou
contestatárias, mas que uma excepcional conjugação de circunstâncias projecta
para a ribalta e para lugares de poder. Tsipras, tal como Varoufakis, pode ser
apenas mais uma dessas figuras.
De facto, lembrava um
artigo recente do diário grego Ekathimerini, o primeiro-ministro grego é alguém
que parece querer abusar da sua sorte. Se o velho sistema político grego, corrupto, doente
e ineficaz, não tivesse colapsado na sequência da crise financeira aberta em
2008, por muito talentoso que Tsipras fosse nunca conseguiria levar o seu
pequeno partido da esquerda radical, que antes valia apenas 3% dos votos, até
aos 36% que lhe permitiram estar hoje no poder. Nesse artigo recomendava-se que
o jovem primeiro-ministro não tentasse abusar da sorte, pois ela de pouco lhe
serve no tipo de negociações que tem tido pela frente.
Habitualmente, a forma
desastrada como, ao longo dos últimos cinco meses, a dupla Tsipras-Varoufakis
tem lidado com os parceiros europeus, alienando todos os potenciais aliados e
destruindo toda a possível boa vontade existente (e se alguém até abusou dessa
boa vontade, esse alguém foi Jean Claude Juncker), tem sido atribuída a uma
mistura de falta de experiência e de arrogância intelectual. É uma explicação
insuficiente, que não compreende a natureza profunda de uma organização
política como o Syriza.
Os radicais gregos não
desejam apenas combater a austeridade – eles querem é tirar partido do
descontentamento provocado pela austeridade para promoverem um tipo de
sociedade radicalmente diferente da nossa. Eles não são reformistas ingénuos,
são revolucionários que querem aparecer como pragmáticos. Tal como Álvaro
Cunhal em 1975, eles não querem uma “democracia burguesa” – só
são diferentes de Cunhal porque não sabem muito bem o que querem,
pois longe vão os tempos da União Soviética.
A biografia do actual
primeiro-ministro grego devia ter-nos alertado para o que ele realmente deseja.
Quando entrou na política, no final dos anos 1980, fê-lo aderindo a um partido
comunista pró-soviético na exacta altura em que o Muro de Berlim estava a cair.
Quando deixou esse partido, não o fez por desilusão com o comunismo, mas para
se juntar a uma força política porventura ainda mais radical. A sua vida foi
passada nesses meios partidários e entre militantes associativos e sindicais.
Umas vezes fez figura de moderado, outras de radical, navegando com habilidade
por entre as múltiplas facções de uma extrema-esquerda grega permanentemente
marcada por cisões e reconfigurações. Mesmo assim não há dúvida que encontrou o
tom certo para cavalgar a onda do descontentamento popular, o que até não
fi grande obra: Juncker disse-lhe recentemente que, se ele próprio
tivesse concorrido a umas eleições com o mesmo tipo de promessas que o Syriza
fez, não teria ficado pelos 36% dos votos, teria chegado aos 80%.
Varoufakis tem um percurso
pessoal diferente, mas que também não nos devia criar ilusões. Ele é apenas
mais um dos milhares de intelectuais radicalizados que têm ocupado, em todo o
mundo desenvolvido, os departamentos de ciências sociais das universidades e
utilizado essas plataformas para promoverem uma agenda
política anti-sistema. Chomsky não é hoje a excepção, é antes a regra um
pouco por todo o lado. Trata-se de gente que, apresentando-se como académicos,
não hesitam ser aparecer como figuras de proa nos fóruns da
“alter-mundialização” (como o nosso Boaventura Sousa Santos) ou em eventos como
um “festival subversivo” (como fez Varoufakis no Verão de 2013,
aí fazendo as suas confissões na qualidade de “marxista errático”). O piano, o apartamento com vista
para a Acrópole e o cachecol da Burberry apenas ajudam a compor a imagem do
intelectual “esquerda caviar”, uma imagem imensamente conveniente quando a
maioria do eleitorado já não é composta por descamisados, mas sim por uma
classe média que também sonha com o piano, o apartamento e o cachecol.
O que surpreendeu Tsipras e
Varoufakis depois de terem chegado ao poder (com a ajuda da direita
nacionalista e xenófoba, convém não esquecer), foi terem verificado que não
bastava invocarem o seu “mandato democrático” para assustarem governantes
também eles mandatos pelos seus eleitorados. E o que os surpreendeu ainda mais
foi chocarem com a indiferença, quando não com a hostilidade, dos outros povos
europeus em nome dos quais pretendiam e pretendem estar a falar.
Por sua vez, o que surpreendeu
os outros dirigentes europeus foi encontrarem pela frente líderes que não se
limitavam a fazer críticas razoáveis a um processo de resgate cheio de erros e
equívocos, mas que pretendiam instaurar na Grécia uma espécie de versão moderna
do leninista “socialismo num só país”, só que com a diferença de agora
esse novo “paraíso na terra” ser financiado pelos contribuintes do resto
da Europa.
Não se pense que estou a
exagerar. Olhe-se, por exemplo, para o “non-papper” de propostas gregas que foi enviado para
Bruxelas a fingir que Atenas tinha alternativas às políticas de contenção
orçamental. Ou leia-se a intervenção que Varoufakis leu no último Eurogrupo e,
logo a seguir, publicou no seu blogue pessoal. Não vou entrar no detalhe
desses dois documentos, onde há muitos parágrafos que até parecem razoáveis.
Vou apenas dar um ou dois exemplos do que neles é significativo. Assim, num
país que precisa desesperadamente de investimento estrangeiro e já tem uma das
taxas de IRC mais elevadas da Europa, a “alternativa” do Syriza é aumentar
ainda mais esse imposto. Mais: num país com um mercado laboral esclerosado e um
Estado gargantuesco e ineficiente, Varoufakis propõe que se combata a
existência de fraudes como o pagamento de meio salário mínimo a trabalhadores
que trabalham a tempo inteiro não com mais fiscalização, mas com mais
contratação colectiva.
No final de Fevereiro, Tsipras
e o seu governo foram obrigados a aceitar o prolongamento do programa de assistência que antes tinham
abjurado. Na altura pouco mais conseguiram do que mudar o nome à toika, que
passou a chamar-se “as instituições antes designadas como troika”. Com isso
ganharam-se quatro meses para negociar, e nesses quatro meses nada de
substancial se negociou, como o último Eurogrupo comprovou. Entretanto tudo o
resto ficou pior: a economia, que tinha recomeçado a crescer, voltou à
recessão; a colecta fiscal caiu; a fuga de capitais aumentou; o Estado voltou a
deixar de pagar algumas das suas contas; e se alguma confiança ainda
existia as partes, ela foi destruída.
Pior: o Syriza, ao ocupar o
poder e ao colocar os seus homens nos lugares chave, está a mostrar que não é
menos clientelar do que os velhos partidos gregos. Um bom exemplo disso é a
forma como reabriram a televisão pública e a transformaram num instrumento de propaganda. Não que
os outros não tivessem antes feito o mesmo – a diferença, hoje, é que
já ameaçam os operadores privados com a cassação das suas licenças,
uma ameaça “à venezuelana”.
É por tudo isto que não creio
que se devam alimentar expectativas relativamente à cimeira europeia de
segunda-feira. Até pode ser que aí se descubra um qualquer compromisso de
última hora que, por exemplo, prolongue o prazo de validade do ajuda até ao
final do ano. Mas se isso suceder, a única garantia que temos é que viveremos
de novo este sufoco daqui por mais uns meses.
A Grécia do Syriza no euro
será sempre uma crise permanente, pois aquele partido não é apenas um PS
um pouco mais radical – o Syriza é uma coligação de radicais que são
convictamente contra o que os menos sofisticados, ou menos dissimulados,
designam como “capitalismo” – basta ver o discurso de alguns dos manifestantes que têm saído à rua
em apoio do governo. Mais: ao mesmo tempo, muitos na Grécia começam a sentir
que as suas promessas foram enganadoras e que a sua agenda pode acabar numa
catástrofe, e também esses já começaram a sair à rua, porque não se imaginam fora do euro
ou afastarem-se da forma de vida democrática e livre da
União Europeia.
Há momentos em que só temos a
ganhar em acabar com situações equívocas, e este é um desses momentos. Se os
gregos querem continuar o seu choradinho, que o façam fora do euro e sem as
ajudas que, mal ou bem, os salvaram da asfixia. Se, pelo contrário, querem ser
levados a sério, então enfrentem sem ambiguidades o irrealismo que os levou a
fazerem uma “escolha democrática” com premissas que não dependiam deles nem do
seu governo, antes do dinheiro dos outros contribuintes europeus.
Não é apenas a paciência de
Schauble, de Hollande, de Merkel ou de Juncker que já se esgotou. É também a
nossa.
Título: JP
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