José Manuel Fernandes
Lendo o detalhe das propostas
do PS para a Segurança Social conclui-se que, de novo, estas agravam as
injustiças intergeracionais. São sempre as pensões futuras a pagar a conta da
tibieza no presente.
1. A proposta do grupo de economistas do PS relativa à baixa da
taxa da TSU teve uma virtude: a de assumir que existe um problema de
sustentabilidade da Segurança Social. Até agora, para o PS, a reforma de 2007
tinha resolvido todos os problemas por muitas décadas. Mas, ao mesmo tempo,
repete e agrava um erro comum a todas as reformas do sistema de pensões: trata
de resolver problemas de hoje atirando a factura para o futuro e, sobretudo,
volta a agravar a injustiça intergeracional já existente. Mais uma vez, vai
deixar uma parte das contas para outros pagarem.
Comecemos pela forma como o
PS, no seu documento mais detalhado sobre este tema, “Uma década para a
Segurança Social portuguesa”, assume o problema da insustentabilidade. É que
fá-lo de uma forma tão retorcida que é quase cómica: “Mesmo com a recuperação
de uma parte considerável das recentes perdas cíclicas do sistema, a evolução
demográfica permite antecipar que a esta realidade se possam vir a juntar, num
futuro não muito longínquo, problemas estruturais de financiamento em virtude
da demografia dos pensionistas ser essencialmente oposta à demografia dos
contribuintes para o sistema.”
Em português corrente o que
isto quer dizer é que o PS reconhece que os problemas estruturais do sistema
não decorrem apenas da recente crise – como têm dito tantos dos seus dirigentes
e deputados, para a seguir acrescentarem que a culpa é da “estratégia de
empobrecimento” –, mas desse facto simples, evidente, de termos cada vez mais
pensionistas e cada vez menos trabalhadores a descontarem.
Mas deixemos esta curiosa
passagem do documento para irmos ao essencial. E o essencial é que o PS quer
mexer nas fórmulas de financiamento da Segurança Social, tirando dinheiro ao
sistema. E quer fazê-lo sem, como se escreve de forma cristalina, tocar “nas
pensões já formadas ou próximo de serem constituídas”. Ou seja, o PS reduz o
financiamento mas não reduz os pagamentos, porque se recusa a aceitar que o
valor de muitas das pensões em pagamento constitui uma injustiça
intergeracional. Ora esta é uma realidade que só por cegueira deliberada pode
ser negada.
Por coincidência – infeliz
para este tipo de abordagem, mas importante para podermos todos ter uma
discussão mais esclarecida –, a Comissão Europeia acaba de divulgar o seu
Ageing Report 2015. Ora o que podemos ler nesse relatório é que, mesmo sem as
actuais propostas socialistas, as condições em que um trabalhador se reforma
hoje são muitíssimo melhores do que aquelas em que os actuais contribuintes se
reformarão no futuro. Senão vejamos: em 2013, o valor da primeira pensão de
quem se reformou nesse ano correspondeu, em média, a 57,5% do seu último
salário base; em 2025, já só corresponderá a 44,8% e em 2060 cairá ainda mais,
para 30,7%. Hoje, essa taxa de substituição é superior à média da zona euro,
onde está nos 46,3%; em 2060 ficará bem abaixo dessa mesma média, que deverá
situar-se nos 38,6%.
2. O que é que estes números nos mostram?
Primeiro, que um jovem que
entre hoje no sistema vai descontar para uma pensão que, quando passar à
situação de pensionista, corresponderá a cerca de metade do valor real das
pensões que os seus descontos de hoje pagam (não nos esqueçamos que não
descontamos para um mealheiro que nos pertence, descontamos para pagar as
pensões dos actuais reformados na esperança de que os nossos filhos e netos
depois descontem para pagar as nossas).
Segundo, que o nosso sistema é
hoje mais generoso do que a média da zona euro no que toca à formação das
actuais pensões, e que será muito mais penalizador daqui por umas décadas. Isso
sucede por dois motivos: porque somos uma das sociedades mais envelhecidas da
zona euro, um dos países com uma demografia mais desfavorável; e porque adiámos
sempre as reformas do sistema, recusando-se sempre o poder político (excepto
durante a actual crise, mas sempre com a oposição frontal do Tribunal
Constitucional) a tocar nas reformas a pagamento ou mesmo nas dos trabalhadores
muito perto da idade da reforma.
Face a este desequilíbrio
entre as vantagens do presente e as desvantagens do futuro, o que propõe o PS?
Compensar o dinheiro que a Segurança Social vai deixar de receber devido às
baixas na TSU não com um corte nas pensões actuais, mas com um corte ainda
maior nas pensões futuras. Eis a forma como justifica a medida: “A actual
geração ‘pede emprestado a si própria’, não há nenhuma transferência
intergeracional”.
Lê-se e até custa a acreditar.
Primeiro, porque, apesar da evidente injustiça do actual regime, assumir que a
não existência de nenhuma transferência intergeracional é uma virtude, quando
na verdade é um defeito. Depois, por tentar vender a medida como um empréstimo
que se faz a si próprio. Ora sucede que isso só é verdade para quem beneficiar
do período transitório de baixa da TSU – todos os trabalhadores que estejam
hoje fora do sistema (desempregados, emigrados, demasiado novos, informais) não
beneficiam da medida mas levam à mesma com o corte nas suas pensões futuras.
Mas mesmo que beneficiasse todos, seria, sempre, uma espécie de empréstimo sem
alternativa, sem escapatória. Ao menos quem desconta podia ter liberdade de
escolha entre o regime em vigor e o proposto pelo PS.
Argumenta-se ainda no
documento que tenho vindo a citar que esta opção a favor da intangibilidade das
pensões em pagamento se justifica por uma questão de confiança no sistema: os
actuais trabalhadores perderiam a sua confiança na Segurança Social se houvesse
esse tipo de cortes. Trata-se de um argumento extraordinário. Eu, por exemplo,
trabalho há 39 anos e já passei por várias reformas da Segurança Social. Todas
elas, e mais esta se se concretizar, prejudicam o cálculo da minha futura (e
eventual) pensão. Todas elas fizeram com que me arrependesse de opções que
tomei em função do regime existente, e que depois foi sempre mudando. Sei que a
situação dos meus filhos é ainda bem pior do que a minha. Nem consigo imaginar
como será a dos meus netos. Mesmo assim dizem-me que um sistema que prolonga e
agrava injustiças relativas me dá mais confiança do que uma reforma que
procurasse, mesmo que mitigadamente, mesmo que moderamente, corrigir uma parte
dessas injustiças. Não é para levar a sério.
É pena que em Portugal os
portugueses raramente façam contas e ainda menos se deem ao trabalho de lerem
tudo o que os partidos produzem. Se não fosse assim já mais gente estaria a
fazer o verdadeiro debate sobre a descida da TSU, que é o que diz respeito aos
direitos futuros, não o hoje promovido pelos grupos de interesse do costume em
torno dos direitos presentes.
Perante estes dados, só posso
chegar a uma conclusão, a mesma a que Fernando Ribeiro Mendes chegou há dez
anos quando, depois de uma tentativa frustrada de reformar a segurança social
no primeiro governo de Guterres, escreveu o livro “Conspiração Grisalha”: o
lobbie dos reformados é muito forte e o peso dos votos dos pensionistas é
demasiado elevado para os políticos terem coragem de enfrentar a necessidade de
tocar em interesses constituídos.
3. Mas vamos ainda assim
admitir que estas propostas do PS eram justas, correctas e funcionavam (e que
estimular o consumo das famílias era a melhor forma de relançar a economia e
não a melhor forma de agravar o défice externo). Se o fizermos e, depois, olharmos
para as contas que estão no anexo final do documento, continuará a haver
números que não batem certo.
Vou dar um exemplo: no cenário
dos economistas do PS, o Estado gastará em prestações sociais no final da
próxima legislatura, em 2019, menos 968 milhões de euros do que o previsto no
que eles designam como “cenário central inicial” e que é o da Comissão
Europeia. Ou seja, quase mais mil milhões de euros de poupança, isto quando se
promete ao mesmo tempo repor os “mínimos sociais”, dar mais subsídios e pagar
mais prestações. Como é possível?
Será a diminuição do
desemprego, onde o PS espera um milagre? Não chega. Então o que é? Dando voltas
ao documento, e já que os modelos utilizados não são públicos, só encontro uma
explicação: nos cenários do PS o crescimento médio da despesa com pensões nos
próximos anos será de 2,1%, isto depois de o crescimento médio anual, de 2009
para cá, com pensões congeladas excepto nos escalões mais baixos, ter sido de
3,8%. Não se explica no relatório como se chega a tal número, já que o
contingente de pensionistas vai continuar a aumentar, assim como a pensão
média. Por isso fica a dúvida: estamos perante desconhecidos pózinhos de
perlimpimpim ou os números que foram “espremidos” para o resultado final dar
certo?
Não basta juntar 12
economistas (mas nenhum com experiência de trabalho no sector privado) para dar
credibilidade a opções que, no fundo, são políticas, como a que volta a agravar
a injustiça intergeracional do nosso sistema de pensões. E num país onde, ao
contrário do que sucede no Reino Unido ou na Holanda, não existem auditorias
independentes das promessas eleitorais, não basta a sonoridade das assinaturas
para compreendermos a autenticidade de alguns números.
Era bom por isso que a maioria
detalhasse rapidamente as suas propostas para também as podermos avaliar e,
depois, continuar um debate importante que, quando entrarmos na gritaria da
campanha, se arrisca a ficar enterrado e completamente esquecido.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
12-6-2015
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