Mário Amorim Lopes
Pedro Passos Coelho
disponibilizou-se para uma conversa de cerca de meia hora com os social média
que estavam presentes no Congresso. Estive lá eu, o Carlos Guimarães Pinto, o
Vítor Cunha, entre outros. O texto que se segue é o meu entendimento, muito
próprio, do que foi a conversa e de quem é Pedro Passos Coelho. Não reflecte
necessariamente a opinião de nenhum dos outros que esteve presente, nem d’O
Insurgente. Não é uma crónica, não é uma entrevista, é um texto livre, tão
livre quanto possível.
Eram 13h30. Em ponto. A
pontualidade não define um grande líder — Churchill tinha o terrível hábito de
chegar tarde a encontros com o Rei Eduardo VIII, um homem de sangue britânico e
pontualidade suíça —, mas define um homem pontual. Um homem pontual leva os
seus compromissos a sério, e isso não é pouco. Em contraponto, José Eduardo
Martins, que alguns afiançavam ser a alternativa a este Passos que alguns
queriam crer isolado, os que das cadeiras de comentador urdiam, em voz audível,
«isolado!», chegou cinco minutos atrasado à votação, ficando assim
impossibilitado de votar. Esquivou-se então em tom de remoque: «é natural, este
PSD está cada vez mais alemão». Recordei-me de uma história passada em Lund, na
Suécia. O autocarro preparava-se para partir, e um homem, que corria
desalmadamente, achega-se, ainda a tempo de bater no vidro, respiração
sincopada com o fôlego. O condutor, irredutível, prossegue viagem. Fá-lo
sabendo que facilitando esta — apenas esta; oh!, seja simpático; muito obrigado
—, estaria a prejudicar terceiros. Ao beneficiar um estaria a atrasar todos os
outros. Ser sueco ou ser alemão é isto.
O espaço onde nos recebia era
o melhor que um contentor montado de improviso em zona privada do Congresso
poderia proporcionar. Outros, outrora, exigiriam condições mais condignas para
quem se presta à causa pública, quando na verdade se prestam da causa pública.
O espaço era austero, o que combina com a figura de Passos. As paredes brancas
e inóspitas que nos circundavam demarcavam o espaço. O físico, que tampouco
importa, e um outro, que procurava dar privacidade à coisa. Nesse espaço Passos
poderia estar à vontade; largar a postura institucional, usar o tom coloquial,
disparar uma ou outra piadola de circunstância, os ice-breakers,
que seduzem quem se quer deixar seduzir. Nem uma. A conversa poderia ser
transcrita e reproduzida verbatim em qualquer jornal, em
qualquer documento oficial. Só uma referência a «gajos» e nada mais se
aproximaria do coloquialismo. Passos não desmontou a persona — pensava eu. Não
deixava cair a máscara. Não podia. Não há máscara, não há persona, a figura
perante nós era mesmo Pedro Passos Coelho, o homem e o político, pois são ambos
indissociáveis. «Frio, sereno, responsável, determinado», havia de dizer
Santana Lopes horas mais tarde.
O pin na lapela continuava lá,
ou não fosse Passos, Passos. Estaria melhor empregue na lapela de outros, mas a
isso aludirei mais tarde. Havíamos preparado meia dúzia de questões. Queríamos
ser ousados, disruptivos, fugir à planilha jornalística. Afinal, não somos média
tradicionais, nem somos sequer média. Não temos de seguir nenhum guião, nenhuma
regra dita ou regula esta conversa. Na pior das hipóteses seríamos tão parciais
ou imparciais quanto o Público. Queríamos também um traço de humor. Mas nem
sempre as coisas correm como prevemos, e a entrevista era afinal uma conversa
informal, que, tratando-se de Passos, seria naturalmente formal.
A primeira questão prendeu-se
inevitavelmente com algo que há muito me preocupava, e que tão bem plasmado
estava no slogan que Passos decidira adoptar como mote de campanha — «Social-democracia,
sempre!». Credo. Henrique Raposo, em 2008, definiu bem o posicionamento
ideológico dos partidos portugueses. O PCP era a esquerda marxista; o BE a
esquerda circense; o PS a esquerda socialista; o PSD a esquerda
social-democrata e o CDS a esquerda beata. Mais coisa, menos coisa, tudo de
esquerda. Passos queria mesmo recuar 40 anos e levar o PSD de volta ao
socialismo? É que nesse campeonato o PSD está automaticamente derrotado. Há
outros partidos com bem mais apetência para o socialismo, para as vidas para
além do défice, para o despesismo, para as medidas populares, populistas e
popularuchas, para o comprar a pronto e pagar a prazo. E, invariavelmente, para
falir o país. Era isto que o PSD ambicionava voltar a ser?
Impôs-se o silêncio.
Expectante, Passos aguardava por uma questão. «Bernstein definiu a social-democracia
como a via não-revolucionária para o socialismo. Entretanto caiu o muro de
Berlim, a União Soviética dissolveu-se e o modelo socialista faliu — no sentido
figurado e no sentido literal, pois de facto faliu muitos países. O que é a
social-democracia em 2016?» — questionei-o, finalmente. Passos reagiu: não, a nossa social-democracia
não é a social-democracia de Bernstein ou de Rosa Luxemburgo. Ainda bem, é que
essa social-democracia é socialismo de fato e gravata, pérolas e iPhones, ao
invés da boina, da barba e da AK-47 — pensei eu. Estava (um pouco) mais
descansado, mas isto não bastava. Passos deu então o exemplo da evolução da
social-democracia dos países nórdicos. Referiu-se à Dinamarca, à Suécia e à
Finlândia. À liberdade de escolha na escola, nos prestadores de saúde. E eu
projectava aquilo que sabia destes países: de 1994 até hoje, a Suécia reduziu a
despesa pública de mais de 70% do PIB para cerca de 53%; existe o
cheque-ensino, significando isto que uma família pobre, que nasceu num bairro
pobre, pode sonhar com ter um filho a estudar numa boa escola e a não estar
condenado à malfadada roleta russa das escolas públicas que rodeiam o bairro —
seis balas no tambor e outra vida perdida; a Dinamarca tem um mercado laboral
flexível, que, não dificultando o despedimento, não dificulta a contratação. A
flexisegurança dinamarquesa permite manter as empresas competitivas, ao mesmo
tempo que o Estado protege os mais vulneráveis. 6.3% de desemprego na
Dinamarca, metade de Portugal. Recordei-me do 12º lugar da Dinamarca, do 19º da
Finlândia e do 23º da Suécia no Índice de Liberdade Económica, que contrastam
com o tíbio 64º lugar de Portugal nessa lista, que disputa taco-a-taco com a
Albânia e com o Ruanda, reconhecidos portentos económicos. Pensei também nos
sistemas de pensões por capitalização, responsáveis e que premeiam a poupança.
«A social-democracia evoluiu» — recordou-nos, e trouxe-me de volta. E recordou
uma história de Sá Carneiro. Quando questionado se estaria mais próximo do SPD
ou da CDU — contava Passos —, este respondeu «SPD!» sem deixar que o
jornalista terminasse de formular a questão. E a questão é que, hoje, nem o SPD
é o SPD de então, tal como o PS também não é o PS, e até o próprio PCP cedeu
aos revisionismos e ocupa lugar cativo nessa «brincadeira burguesa» — palavra
de marxista — que é o Parlamento. Esta social-democracia é bem menos socialista
do que o que existe em Portugal, é bem mais liberal. O mundo é menos
socialista. Não coincidentemente, o mundo é menos pobre e mais próspero. E
ainda bem.
Se podemos sonhar,
perguntei-lhe então se não podíamos sonhar sermos como a Irlanda. Fiz esta
pergunta como aliás faço sempre, exactamente com a mesma entoação da criança
que pergunta aos pais porque não pode ter aquilo que o amigo da escola também
tem, com a esperança e a convicção de que não existe nenhum determinismo
histórico que nos condene a esta consumpção que nos consome, porque somos
aquilo que quisermos ser — enfim, perguntei com toda a inveja e angústia do
mundo. A Irlanda dos anos 80 era um dos países mais pobres da Europa. Baixou o
IRC, reformou e liberalizou as suas instituições, fez uma das consolidações
fiscais mais duras de sempre e reduziu significativamente a despesa pública.
Libertou-se. Com isto atraiu investimento directo estrangeiro, que em poucos
anos a catapultaram para os lugares cimeiros da riqueza e prosperidade
europeia, tendo ultrapassado quase todos os países, incluindo a Alemanha.
Incluindo os tais alemães pontuais. Porque não podemos sonhar e almejar ser
como a Irlanda, um país mais próspero, menos pobre? Não podemos ser um Portugal
2.0? E Passos foi Passos, que é, e aqui confirma-se, bem mais do que a sua
circunstância. Respondeu com o mesmo tom assertivo, destemido, empolgado com
que outrora respondera perante a chamada para resgatar o país: «E porque não ir
além da Irlanda?».Aim for the sky and you’ll reach the ceiling. Portugal
tem um clima melhor, praias maravilhosas, uma gastronomia fantástica, paisagens
e cidades maravilhosas — listou. Temos gente igualmente competente, e temos as
gentes para fazer acontecer. É verdade, temos mesmo. E ainda assim estamos tão
longe do céu. Mas esta vontade de fazer, que não nos levou além da Troika, já
não foi pouco. E talvez tenha sido isso que permitiu que Passos conduzisse a
única coligação que chegou ao fim do seu mandato num momento que, não fosse
tratar-se de Portugal, seria apelidado de invulgar —
mais uma falência. Também não fomos além do programa da Troika e muita
coisa ficou por fazer. Mas o que dista daqui ao céu são bem mais do que quatro
anos, é um projecto de uma geração. E, nestes quatro anos, o país, Portugal,
passou de um falência técnica, de um humilhante resgate para um país que
cresce, ainda que timidamente. Onde o emprego recupera, ou recuperava, para ser
exacto. Um inédito excedente na balança corrente e uma balança comercial
equilibrada. Tanta coisa feita, e tanta coisa ainda por fazer. Mas existia um
projecto. Vamos exportar mais, vamos ter contas equilibradas, vamos virar-nos
para fora, vamos baixar os impostos e libertar recursos para que possa haver
criatividade. A mim bastar-me-ia sermos como a Irlanda.
Passos respondeu como se
esperaria que respondesse, e esta certeza é de certa forma tranquilizante. Não
temos um herói — na vida real não existem heróis, apenas anti-heróis — que
cavalga, qual paladino, para salvar o país. Não se presta a isso. A figura mitológica
grega do herói é um sucesso nas grandes epopeias, mas uma desgraça na vida
real, desgraça que termina sempre em desolação e desilusão. Não queremos, não
precisamos de heróis. Precisamos de homens e mulheres que nos digam: «Agora é
convosco!». Os verdadeiros heróis acordam às 7h da manhã e trabalham sine
die para proporcionar uma vida melhor aos filhos, esfalfados pela
labuta e pela repartição de finanças. Os verdadeiros heróis não têm tempo para
ir a Congressos.
Um assessor avisa que o tempo
está a terminar, há afazeres a fazer. E terminada a conversa não consigo deixar
de pensar no pin. Só me ocorre que aquele pin na lapela não faz qualquer
sentido. Passos não precisa do pin para nada. Pin na lapela deveriam usar todos
os que, por via do facilitismo, das vãs promessas e do populismo acabam
invariavelmente falidos. Passos continua a ser Passos, o mesmo Passos, para o
bem e para o mal. E o pin estaria melhor na lapela d’outros, lembrete
permanente de que Portugal precisa de serenidade, responsabilidade e
determinação. Santana Lopes tinha mesmo razão, Passos é isto. Esperemos que não
mude nunca.
Título, Imagem e Texto: Mário Amorim Lopes, O Insurgente, 4-4-2016
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