quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Asperger: um eugenista muito discreto

Caroline Eliacheff

A historiadora norte-americana, Edith Sheffer, realizou uma pesquisa detalhada sobre a personalidade do doutor Hans Asperger (1906-1980) [foto].


Quebrando o mito do resistente, esta mãe de autista revela o passado nazista do cientista austríaco que mandou dezenas de crianças deficientes para a morte.

O chique, é ser diagnosticado com “síndrome de Asperger”, esta forma de autismo dito de alto nível. Os portadores seriam dotados de capacidades intelectuais fora do comum, notadamente no domínio das ciências ou da informática, sem esquecer as dificuldades de comunicação. A jovem militante ecologista Greta Thunberg, rotulada “Asperger” seria dotada de superpoderes? 

O choque, é o livro da historiadora norte-americana, Edith Sheffer, As crianças d’Asperger. Esta mãe de criança autista realizou uma extensa pesquisa sobre a personalidade do doutor Hans Asperger (1906-1980) em sequência do trabalho mais confidencial do pesquisador austríaco Herwig Czech.


Até estes trabalhos, Hans Asperger era considerado pelos seus pares como um resistente austríaco não tendo aderido ao partido nazista. A realidade é outra, mas ele não é o único criminoso que conseguiu apagar o seu passado: ele terminou brilhantemente a sua carreira e os seus superiores idem. Isto é tão surpreendente num país que ainda se considera vítima do nazismo?

Mas o que fez Hans Asperger? Muito antes da anexação da Áustria pela Alemanha (1938), Viena estava na frente em matéria de “pedagogia curativa”, verdadeiro controle social das famílias com as melhores intenções do mundo. Muitos psicanalistas desta geração saíram dos seus consultórios para ajudar os mais desfavorecidos. Isso não impediu que desde 1930 um notório nazista austríaco, Franz Hamburger (1874-1954), assumisse a direção do famoso hospital para crianças de Viena.

O jovem doutor Asperger, diplomado em 1931, deverá a sua rápida ascensão à exclusão dos médicos judeus e à fidelidade aos superiores. Se, como muitos dos seus colegas austríacos, ele não aderiu ao partido nazista, as suas convicções e o seu catolicismo foram suficientes para torná-lo “confiável”, como testemunha a sua ficha de avaliação muito positiva do partido.

Dirigindo o serviço de pedagogia curativa, ele colaborou muito ativamente à medicina do diagnóstico e da triagem visando eliminar as crianças cuja “vida não era digna de ser vivida” aos olhos dos ideais nazistas usados pelo Gemüt, palavra difícil de ser traduzida, um tipo de amor pela comunidade – dir-se-ia hoje empatia – indispensável para fazer parte do Volk, do povo.

Baseado num diagnóstico muito pouco científico de crianças não educáveis (ou não ensináveis, NdT), Hans Asperger enviou dezenas de crianças para a clínica do Spiegelgrund, sabendo que depois de sofrer verdadeiras torturas, elas seriam eutanasiadas com injeção de soníferos administradas pelas enfermeiras. Os testemunhos de raros sobreviventes são aterrorizantes, as cartas de pais para retirar suas crianças ou agradecer por as terem matado, congelantes. Será que ele salvou algumas? Talvez sim.

Hans Asperger trouxe alguma coisa nova à psicopatologia infantil? Ele não inventou o autismo, descrito em 1907 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1867-1939) como um fechamento de si próprio de natureza psicótica, uma ausência de contato podendo chegar ao mutismo. O pedopsiquiatra Leo Kanner (1894-1981), exilado nos Estados Unidos desde 1924, descreveu em 1943 o autismo infantil precoce que ele diferencia da esquizofrenia. Afeição presente desde o nascimento, trata-se de uma incapacidade a estabelecer contato com outrem provocando um isolamento extremo, de estereotipias, de distúrbios de linguagem, uma extrema violência autodestrutiva.

Hans Asperger, ele, descreverá na sua tese uma “psicologia autística” (a partir de quatro casos), na qual ele se apoiará para diferenciar os “irrecuperáveis” e os “alteráveis” (amendables, no original). Em 1944, ele republica, na indiferença geral, a sua tese desnazificada e, por conseguinte, publicará muito pouco sobre este tema. Ele teria sido esquecido se uma psiquiatra britânica, Lorna Wing (1928-2014), ela mesmo mãe de uma filha autista e eminente pesquisadora, não tivesse exumado um artigo de Asperger que lhe pareceu confirmar a sua prática clínica. Em 1981, um ano depois da morte de Asperger, Lorna Wing inventa a “síndrome de Asperger”, desconectada do seu contexto histórico, para qualificar um autismo dito de “alto nível”. A síndrome de Asperger entra em 1994 no Manual de diagnóstico e estatístico dos distúrbios mentais (DSM), mas é retirado em 2013 para integrar o cesto dos distúrbios do espectro autista.

No entanto, continua a ser utilizado pelos psiquiatras, e mais ainda pelo grande público ou associações, como se tratasse de uma etiqueta social lisonjeira.

Me custou avançar na leitura deste livro apaixonante porque ele mostra como os nazistas (entre outros) perverteram um mister que eu exerço, a pedopsiquiatria, e porque o que essas crianças viveram na era nazista é indesculpável. Mas uma questão me assombra e a historiadora a toca: claro, não matamos mais as crianças “não adaptáveis”, mas estamos totalmente livres da ideologia nazista?

Refletimos nas consequências deletérias das classificações dos sintomas em pedopsiquiatria, a fortiori, quando lhes concedemos um valor preditivo? Me vem à memória um relatório do Inserm (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica), em 2005, sobre os distúrbios de comportamento em crianças com menos de três anos, supostos prever aqueles que se tornariam delinquentes. O que suscitou uma forte e sadia reação dos profissionais da pequena infância.

Dizem-nos que o autismo está cada vez mais presente, apesar deste termo cobrir um espectro de patologias díspares, e que é necessário diagnosticá-lo o mais cedo possível. Avaliamos corretamente o efeito auto realizador de um rótulo que reduz uma pessoa ao seu sintoma? Tenhamos em mente a lembrança dolorosa dos efeitos devastadores das classificações desmesuradas. Nossos bons sentimentos não nos protegem contra as suas perversões.
Título e Texto: Caroline Eliacheff, Revista Causeur, verão de 2019, páginas 86 e 87.
Tradução: JP, 1 de agosto de 2019

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