sexta-feira, 4 de outubro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Subliminar

Aparecido Raimundo de Souza

A MENINA ESTÁ DE COSTAS, sentada num banco mal-acabado, o olhar a olhar comprido para coisa alguma. E dentro dessa coisa alguma, oculto nesse nada infindo, ela procura, em vão, algo extraviado. Sua mente rodopia oca e sem nada. O cérebro se quedou desprovido de conteúdo, como uma folha de papel sem nada escrito. Seu rosto perdeu a exuberância de outrora para dar lugar a uma tristeza aflita e enfadonha como o infinito desbotado e sem viço que paira acima de sua cabeça cheia de nuvens ameaçadoras.

Há uma solidão reinante que teima em se agigantar. Em criar formas grotescas e ferir profundamente a sua vida, se aproveitando da sua desproteção total. Ela está quieta e muda, muda e quieta, estática, sentada, no banco tosco de madeira. A praça onde está o banco, se acha vazia, o coreto sem ninguém, a igreja ao longe, abandonada... Ela, a menina, está embaraçada em meio a tantos sonhos difusos, buscando dentro do peito, talvez na área que a cerca, o tempo do seu “eu ausente”, estancado em algum lugar do passado. Além dessa solidão travessa, reincide uma agonia mais pujante e cruel.

Uma agonia lenta, cansativa, peçonhenta, uma agonia que machuca o corpo inteiro macera as entranhas e abre, no peito, uma ferida enorme não permitindo que o corte cicatrize por inteiro. Tampouco apague as marcas deixadas pelo silêncio pesado, sem pressa de ir embora. Por essa razão, a menina sentada no banco, chora baixinho, chora envergonhada, acanhada obstinada em não ser colhida de surpresa pôr algum estranho vindo da alguma viela próxima, e sem mais nem menos pintar à sua frente, sem prévio aviso.   Por essa razão também pode ser que uma nova dor mais amarga, mais degradante, lhe magoe um pouco além do que poderia suportar. Seria cruel, desumano, mas não totalmente fora de não chegar a ocorrer. 


Tivesse forças para se levantar sairia correndo em busca da vida que ficou escondida (quem sabe, num canto desconhecido), acorrentada, tolhida, vencida, ultrajada... Se acalentada, encorajada, ao menos, de algumas gotas de ânimo, possivelmente sorriria para o mundo ingrato que se descortina além do horizonte, e se estende diante de sua pequenez e engole a esperança quase desfalecida. Por fim, se tivesse força, ah!..., se tivesse força, se tivesse um fio de alento, fugiria do bicho papão que abocanha o chão onde pisa. Esse mesmo bicho papão que lhe rouba a paz e a coloca num labirinto de espelhos refletindo a presença de todas as desgraças que rondam seu estado de espírito.

Como se não fosse pouco, deixou cair por terra o brilho que lhe fazia diferente de todas as demais. Igualmente permitiu que lhe roubassem a vontade, a coragem e até a razão de existir. Talvez tenha sido por esse motivo aparentemente banal que seu sorriso tenha se apagado como uma lâmpada quando alguém aciona o interruptor e no lugar da clareza surja a escuridão total de todos os abismos.  Seu coração, por conta desse inesperado, se descompassou os passos e dos passos a torto e a direito, a fez ficar com o corpo trêmulo, como se uma febre de quarenta graus lhe incomodasse por dentro, indefinidamente... Intermitentemente...

No fundo, a menina do banco da praça só pretendia se levantar. Ficar de pé e contemplar, do alto da sua maturidade (ainda que um pouco fora de prumo), o futuro logo ali adiante. A alguns passos. Queria ouvir o mundo, entender todas as palavras sem que nada lhe tolhesse os movimentos, ou inibisse a direção a ser seguida. A menina, coitada, cansada de correr a esmo e às avessas do acaso da própria vontade, só almejava chutar o banco. Só almeja chutar o banco, chutar para longe e... Recomeçar...

Transformar o vazio que lhe sangrava pelos poros, enfeitar com as cores do arco íris seu dia a dia e acreditar, sobretudo, acreditar no próximo minuto... Crer piamente que ele poderia lhe fazer um pouquinho só completamente feliz. Feliz e plenamente realizada. Mas nada aconteceu. O tempo que ficou ali, sentada no banco, só fez aumentar a sua dor. A menina continua parada, estática, de costas, sentada no banco mal-acabado, o olhar a olhar comprido para coisa alguma.

E dentro dessa coisa alguma, oculto nesse nada infindo, ela procura, em vão, algo extraviado. Sua mente rodopia oca, sem nada. O cérebro quedou desesperançado e como uma folha de papel sem coisa alguma escrita, voou ao sabor do vento. Seu rosto perdeu a exuberância de outrora para dar lugar a uma melancolia aflita e enfadonha como o céu desbotado e sem vigor que paira acima de sua cabeça cheia de nuvens ameaçadoras. Sem saída, sem eira nem beira. Sem ter para onde ir, para onde correr, novamente se põe a chorar. E o frio do banco incrivelmente se junta à sua tristeza, num abraço estranhamente esquálido e difícil de ser compreendido.    
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 4-10-2019

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