Gabriel Mithá Ribeiro
As sequelas do ciclo histórico
bipolar EUA/URSS (1945/1991) bipolar EUA/URSS (1945-91) continuam entranhadas
nas sociedades e no mundo. São elas que demarcam as fronteiras entre sistemas
sociais, culturais, políticos ou econômicos, por um lado, que mais se
aproximaram da moral social de tradição ocidental onde a estabilidade e a
prosperidade se consolidaram e, por outro lado, que mais se aproximaram da
moral social modelada pelos soviéticos onde a instabilidade e a falta de
prosperidade se tornaram salientes.
Os povos do mundo ocidental
estão a ser pioneiros a tomar consciência de ser esse o maior desafio do mundo
pós-Guerra Fria. O ponto de partida foram as vitórias eleitorais sucessivas da
nova direita na Europa do Leste e na Europa Central, a primeira zona do mundo a
ser contaminada pela distopia progressista desde o início da Guerra Fria dado o
avanço territorial do poder imperial comunista (1945), mas também a primeira a
reagir logo após o colapso da URSS (1991).
A atitude reativa dos povos
dessas regiões da Europa incidiu na recuperação e renovação de dois núcleos
sequestrados durante a dominação soviética: as suas raízes civilizacionais
seculares judaico-cristãs e os seus não menos seculares sentimentos de pertença
às suas identidades nacionais.
A Europa Ocidental, por seu
lado, censurou e tentou travar os primeiros passos daquele que está hoje
transformado num amplo movimento de reencontro do mundo ocidental com a sua
própria dignidade civilizacional.
A renovação democrática do
rumo da história iniciada no leste europeu contrariava o internacionalismo
ditatorial do império soviético que persiste latente na Rússia atual, atitude
reativa que foi sendo estendida a outras tutelas supranacionais. Entre os alvos
começaram a sobressair a ONU, organização que preserva os ideais progressistas
impositivos da extinta URSS e, embora com um ponto de partida ideológico
plural, a União Europeia (UE) nascida no pós-Guerra Fria do Tratado de
Maastricht (1993).
A última deu continuidade à
Comunidade Econômica Europeia (CEE), 1957-1993), porém, distinguindo-se da
antecessora quer por ter alargado a todo
o continente passando a incluir também os países que tinham estado debaixo da
influência soviética, quer sobretudo por ter enveredado por uma atitude
centralista impositiva, agora sediada no coração da Europa, entre Bruxelas, Estrasburgo
e Frankfurt.
Rígidas nos seus excessos
burocráticos e de normatividade legislativa, política, econômica ou de modelo
de sociedade, as tutelas da EU foram agravando de modo continuado a sua postura
à revelia das diferentes sensibilidades dos povos.
A coesão do continente imposta
dos poderes políticos tutelares para o senso comum, de cima para baixo
(tal como havia acontecido com o império soviético a leste então sediado em
Moscovo), explica a incapacidade do projeto europeu em ultrapassar a fase
embrionária que mantém o seu ideal numa dimensão artificial, desafio que para
ser ultrapassado implica que a UE possua no seu âmago uma orientação
civilizacional especificamente europeia e ocidental, gerada de baixo para
cima.
O último tipo de construção
identitária é o que explica a sustentabilidade do movimento político reativo
iniciado nos anos noventa do século XX, e a sua consequente resistência no
tempo e alargamento progressivo por toda a Europa. O fenômeno mantém-se
endêmico, tendendo a aprofundar os seus impactos em conjunturas de maior
insatisfação dos povos autóctones por razões substantivas.
As últimas vão de sucedendo e
sobrepondo. Umas resultam do avanço do terrorismo islâmico em solo europeu a
partir de 2004 (Espanha) na sequência dos atentados de 11 de setembro de 2001
nos EUA, ameaça à Europa ainda por resolver. Outras foram espoletadas pelas
dificuldades financeiras de alguns estados que aderiram à moeda única, os
estados da zona euro, na sequência da crise internacional iniciada em 2007-2008,
em particular por causa das reações de desresponsabilização política e social
manifestadas pelos países afetados (Irlanda, e sobretudo Grécia e Portugal),
atitude resguardada por relatórios internacionais e discursos no mesmo sentido
de líderes influentes da UE ou da ONU, uma crise cujas causas estruturais
também continuam latentes.
Se o crescimento do sentimento
de insegurança entre os europeus e os abalos nas ambições econômicas do seu
projeto comum apontavam para núcleos sensíveis da vida coletiva que suscitavam
dúvidas legítimas, as mesmas agravaram-se num domínio ainda mais sensível, o
dos sentimentos de pertença identitária dos europeus associados à descrença na
capacidade de controle das fronteiras externas da UE.
As fragilidades destas foram
sendo postas à prova quase todos os dias a céu aberto por vagas imigratórias
não-europeias ilegais e indesejadas que se acentuaram a partir de 2015,
situação que se foi controlando nos anos recentes, porém, tal como as
anteriores, ainda sem uma resposta consistente.
A última crise teve o
significado peculiar de ter sido enfrentada, na sua fase inicial, por atitudes
das tutelas políticas nacionais e internacionais da EU que disputavam entre si
quem melhor legitimava e legalizava a ilegitimidade e ilegalidade a que o senso
comum europeu assistia na comunicação social quase em direto.
A disputa resumia-se a apurar
quem mais, entre os líderes europeus, era capaz de responsabilizar os próprios
europeus num momento em que estes se sentiam fragilizados na sua segurança e,
pior, ameaçados nas suas identidades.
No caso dos povos ocidentais
como não acontecia desde o final da Segunda Guerra Mundial e, no caso dos povos
do centro e do Leste, os traumas ainda estão próximos da carne viva
(1939-45/1945-91).
Em tal contexto, a vitória do
Brexit em 2016, o referendo que deu início ao processo de abandono formal do
Reino Unido da EU, ficou transformada no sintoma inequívoco de que o movimento reativo
iniciado no final da Guerra Fria se estava a sedimentar também na Europa
Ocidental.
De agora em diante seriam
segmentos crescentes das sociedades europeias no seu conjunto, de Leste a
Ocidente, a procurar respostas renovadas para os desafios do continente cujo
pano de fundo tem sida a ausência de uma moral social partilhada entre os
poderes políticos tutelares (nacionais e supranacionais) e o senso comum,
domínio essencial à viabilidade de qualquer projeto coletivo nunca sequer
discutido com abertura democrática no âmbito europeu.
É o que explica a ineficácia
das respostas do centralismo da EU aos desafios sucessivos que o continente vem
enfrentando e está forçado a ter de enfrentar no longo futuro.
Na sua autonomia, as ambições
dos velhos povos da Europa tendem a apontar para horizontes cada vez
mais ambiciosos. Não apenas apontam para mudanças nos equilíbrios políticos
instituídos desde o final da Segunda Guerra Mundial em que os povos entregaram
democraticamente a gestão do poder ao centro-direita (democratas-cristãos) e ao
centro-esquerda (sociais-democratas/socialistas), tendência agora reajustada
pelo reforço crescente do suporte eleitoral a uma nova direita nascida no
pós-Guerra Fria desembaraçada da reverência aos resquícios do pensamento
soviético, marca que por si só torna a Europa política mais coesa ao aproximar
a Europa Ocidental da Europa Central e da Europa do Leste, uma versão do
Make Europe Great Again, mas também, e bem mais substantivo, porque as
ambições apontam para uma renovação civilizacional sustentada em aspectos como
a moral social ou os fundamentos históricos e culturais das diferentes
identidades europeias tendo em conta aquilo que define cada uma delas, mas não
menos aquilo que comungam em nome de um sentimento de presença europeia
partilhado que não se dissolva em universalismos progressistas.
Na transição da fase
embrionária do novo ciclo histórico pós-soviético (a nascida nos anos noventa
do século XX) para a fase sedimentação (a que está em curso desde 2016 com o
Brexit) foi essencial a coincidência de um conjunto de condições conjuntas,
a definição tautológica de conjuntura. Foram elas que projetaram o fenômeno de
forma inopinada no sistema internacional por causa das transformações ocorridas
no outro lado do Atlântico.
Entre o velho mundo
europeu ocidental e o que foi seu filho, o Novo Mundo, existe uma
partilha do que é substantivo nas identidades nacionais, como a matriz
religiosa judaico-cristã, as línguas nacionais, as pertenças raciais e étnicas
dominantes ou influentes, as tradições culturais, os tipos de sociedade, as
formas de governação, entre outras características e interesses comungados.
No mesmo ano em que se votou
pelo Brexit no Reino Unido, o grande impacto veio da vitória eleitoral de
Donald Trump (2016) que lhe garantiu a presidência dos Estados Unidos da
América (2017), a superpotência que funcionou como antítese da ex-URSS, sendo
que o novo presidente norte-americano recuperava a frontalidade dessa atitude.
Pouco depois, Jair Bolsonaro
conquistava a presidência do Brasil (2018-19) e aproximava o país mais
relevante da América do Sul do movimento iniciado na Europa de Leste há mais de
duas décadas.
Entretanto, têm prosseguido
avanços no mesmo sentido por todo o mundo ocidental, o que inclui ainda a
Austrália e a Nova Zelândia, para além de Israel.
Não existe memória histórica
de tamanha coesão gerada a partir das raízes identitárias de um conjunto
alargado de sociedades na sua autonomia, um fenômeno amplo sustentado na alma
de povos. É por isso que ele persiste no tempo (por mais de duas décadas) e tem
continuado a propagar-se no espaço nesse período (Europa, América do Norte,
América do Sul, Oceania, Israel.
Não se trata de um conjunto de
epifenômenos isolados, antes de um amplo movimento histórico e civilizacional
ascendente por também possuir um interdito fundamental, referente-chave na vitalidade
e força de qualquer i8dent5idade social i8ndependentetemente da sua amplitude:
a rejeição~~ao9 das sequelas do ideário soviético que invadiram os sistemas sociais,
políticos, culturais, institucionais o0u a história do mundo ocidental.
Enquanto tais sequelas existirem
não é provável que o movimento perca a sua capacidade mobilizadora, desde que
invista com clareza numa moral funcional.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, do livro “Um Século de Escombros - Pensar o futuro com os valores morais da
Direita”, páginas 42 a 45.
Digitação: JP, 12-05-2020
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Muito bom!
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