sábado, 30 de janeiro de 2021

A universidade morta

É terminante a proibição à criatividade intelectual, ao debate e às opiniões independentes. Só são admitidos como válidos os pontos de vista de 'esquerda'

J. R. Guzzo

Um artigo narrando episódios da vida cotidiana como ela realmente é numa das grandes universidades de São Paulo, e que acaba de ser publicado na revista piauí, revela o lado escuro e muito pouco falado das salas de aula mais elevadas deste país. É, no conjunto, um comentário chocante sobre as realidades do ensino superior público de hoje no Brasil. O autor do relato se apresenta sob um pseudônimo. Ele é um professor universitário e, pelos fatos que expõe, é muito compreensível que tenha mesmo de manter o seu nome em sigilo; do contrário seria impossível, na prática, continuar exercendo a sua profissão.

O depoimento narra a história de um colega da área de ciências humanas — onde mais poderia ser? — que, ao chegar para a aula que iria dar certo dia num curso de pós-graduação, foi informado pelos alunos que a carga de leitura que estavam recebendo era excessiva — dois ou três trabalhos por semana, no máximo de vinte páginas cada um. O que eles queriam, então? Resposta: os alunos exigiram que eles próprios formassem pequenos “grupos auto-organizados”, que teriam o direito de escolher os textos que quisessem ler; assim, poderiam acabar o semestre mais cedo.

O professor disse que iria estudar o caso, em busca de “uma solução satisfatória para todos”. Nada feito, conta o artigo da piauí. “Você sempre quis negociar”, respondeu um dos alunos. “O que nós queremos é romper hierarquias e questionar o seu poder.” Segundo lhe informaram, estavam “lutando pela democratização da universidade e contra as estruturas de poder”. A história acabou dando em nada, mas o trágico é que casos assim, ou ainda piores, se repetem o tempo todo dentro da universidade pública brasileira. Ou, em outras e melhores palavras: a maior parte da universidade pública brasileira, hoje em dia, é isso aí.

Sob a camuflagem de uma linguagem agressivamente esquerdista, que reza por um ensino superior “justo”, “progressista”, “igualitário” etc. etc., muitos estudantes estão exigindo que a universidade funcione como “um supermercado ou um restaurante”, escreve o professor, “onde quem decide o que consome (que textos ler), quanto consome (quantos textos ler), por quanto tempo consome (quantas aulas ter) e como consome (como as aulas devem ser) são os consumidores” — ou seja, os alunos. E os professores? Esses são como um gerente de hotel ou um alfaiate, observa o autor do relato, e sua função é “servir ao cliente”.

É a privatização levada às suas fronteiras mais audaciosas; eis aí a universidade pública transformada em propriedade privada dos estudantes e dos professores que se colocam a seu serviço, ou na sua liderança. O artigo da piauí vai adiante, narrando aberrações que se tornam mais e mais curiosas. Em tal universidade, por exemplo, um aluno exigiu que o programa de pós-graduação desse “garantias” de que todos os estudantes inscritos iriam concluir o seu doutorado com sucesso; em outra, uma professora foi notificada por um aluno, via e-mail, que ele não queria escrever o trabalho final previsto para a conclusão do curso, mas fazia questão de ser aprovado. Nos dois casos, os estudantes se mostraram convencidos de que receber o título é um direito adquirido. A universidade, no seu entender, tem a obrigação de dar diplomas a todos os que passaram no vestibular e fizeram matrícula; se tratar os alunos conforme os resultados de seu mérito e de seus esforços individuais, estará praticando o crime de “discriminação”.

Mais adiante, um pós-graduado, e ainda por cima bolsista, recusou-se a participar de uma reunião on-line de seu grupo de trabalho avisando em cima da hora que estava cansado. Numa universidade do Nordeste, um aluno de comunicação recusou-se a ler um texto pedido pela professora porque tinha ouvido “falar mal” do autor em “um documentário”. A professora lhe disse que ele não podia criticar um texto que não tinha lido; foi acusada de “autoritarismo”. Outro estudante, este de ciência política, informou que o método das aulas deveria ser modificado, pois tinha dificuldade de prestar atenção no que diziam os colegas e ficava perdido. Só falta, nessa balada, que as notas sejam dadas pelos próprios alunos — mas ainda vai se chegar lá. Do começo ao fim, a mensagem é muito clara: a universidade pública brasileira, na perspectiva de quem está recebendo aulas, deve funcionar como local de atendimento a um consumidor privado que busca, como diz o autor do artigo, “minimizar custos e maximizar benefícios”.

Não melhora a questão em nada, é claro, o fato de que a essa desordem se junte um clima de repressão cada vez mais agressivo, e cada vez mais policial, contra o livre trânsito de ideias. Há uma proibição terminante à criatividade intelectual, ao debate e às opiniões independentes; só são admitidos como válidos os pontos de vista que se apresentam hoje como de “esquerda”, mais os seus mandamentos sobre raça, sexualidade, igualdade e todos os demais aspectos ligados à existência humana. Multiplicam-se, conforme relata o autor do depoimento, denúncias sem fundamento algum por “racismo”, “homofobia”, “fascismo” etc. etc. contra quem discorda do sistema de fé ideológica e de desejos políticos hoje em vigor. Estranhamente, não é incomum que as vítimas desses ataques sejam professores negros ou gays que de alguma forma não acompanham as doutrinas oficiais a respeito de si próprios; ou pensam como a “esquerda” quer que os negros ou gays pensem, ou vão ter problemas.

A degeneração geral da universidade pública se manifesta sobretudo na área de ciências humanas

Isso tudo é a própria negação da ideia do que deve ser, de fato, uma universidade pública — um centro de saber, sustentado com recursos de todos, e que existe unicamente para transmitir conhecimento a aqueles que se empenham de verdade em aprender, e que vão devolver depois à sociedade, com as competências que adquiriram nos cursos, pelo menos uma parte daquilo que receberam. Não é um “coletivo”, nem um clube, nem uma central política ou ideológica; é um local de trabalho. Se a universidade não servir para fazer isso, não serve para nada; está morta.

A situação relatada acima não é um problema interno, a ser resolvido dentro dos princípios da “autonomia universitária” — ao contrário, é uma questão de primeira grandeza do ponto de vista do interesse público do país e da sua população. A universidade está sendo privatizada por alunos e pelos professores que são seus cúmplices ou incentivadores, mas ela pertence a todos; são os pagadores de impostos, e ninguém mais, que cobrem cada centavo gasto com a universidade pública brasileira. Mais, e muito pior: o ensino superior, esse templo sagrado da esquerda nacional, é um dos mais descarados instrumentos de concentração de renda hoje em vigor no Brasil. É simples. O investimento total do poder público federal na educação, em números redondos e recentes, está um pouco acima de R$ 40 bilhões por ano: a universidade fica com R$ 10 bilhões desse dinheiro todo. Só que há 45 milhões de alunos estudando no curso básico da rede pública de ensino, e 2 milhões nas universidades estatais. Faça a conta. Quem está levando mais?

Essa montanha de dinheiro não sai do bolso dos brasileiros que estão na lista de milionários da revista Forbes; é paga pelos impostos cobrados de todos, sem exceção, ricos, médios e pobres. Não é preciso ter um Ph.D. em nada para constatar que não há nenhuma possibilidade matemática de se dividir por igual uma conta e achar que o peso maior não vai cair no bolso de quem tem menos. Mais: a população está fazendo esse sacrifício no lugar errado. Segundo os últimos cálculos do Inep, a autarquia federal que cuida dos números essenciais da educação brasileira, o custo médio do aluno no curso básico — onde estão as necessidades mais desesperadas e mais urgentes de investimento — é hoje um pouco abaixo dos R$ 7 mil por ano. Um universitário está custando acima de R$ 28 mil por cabeça e por ano.

Se você acha que isso é um disparate em estado puro, espere até ver os números da Universidade de São Paulo, a maior do Brasil. O pagador de impostos paulista (e brasileiro) coloca ali R$ 5,5 bilhões por ano, dos quais cerca de 85%, ou quase tudo, vão para salários e benefícios. O custo anual por aluno, segundo as últimas cifras do Inep, está acima de R$ 52 mil — isso tudo para que os alunos exijam escolher a própria lição de casa e se empenhem nas lutas pela “democratização da universidade”. As outras duas universidades estaduais têm números semelhantes. É a concentração dentro da concentração.

É verdade que a degeneração geral da universidade pública — algo que talvez se possa chamar de deep university, da mesma forma como há uma deep web, ou a internet das sombras — se manifesta sobretudo na área de ciências humanas; na área de exatas já é outra coisa, muito mais próxima ao que um curso superior deve realmente ser. É normal. Nas humanas os alunos não imaginam a si próprios no exercício de atividades de fato competitivas, que exijam conhecimento, talento e mérito individual. Em geral veem a si próprios, no futuro, trabalhando no governo, em meios de comunicação ou em departamentos de marketing — onde não vai fazer muita diferença, no fundo, se o sujeito aprendeu ou não aprendeu alguma coisa na universidade. Nas exatas, ao contrário, o aluno sabe que o seu desempenho acadêmico pode fazer a diferença no verdadeiro mercado de trabalho — aquele, justamente, que exige mais, mas em compensação oferece ao profissional as ocupações mais bem remuneradas, mais compensadoras e sobretudo mais úteis para a sociedade que pagou por seu curso superior.

Não chega a ser um consolo — o grosso dos gastos na universidade pública do Brasil é torrado justamente nas humanas, em que alunos e professores devolvem ao interesse comum muito pouco, ou nada, do que receberam. Que contribuição se pode esperar, por exemplo, dos cursos de direito sustentados pelo pagador de impostos, num país que já tem por volta de 1 milhão de advogados formados? É por isso que países muito mais bem-sucedidos e muitíssimo mais ricos que o Brasil, como o Japão, começam a pensar seriamente em mudar as coisas em sua universidade pública. O Ministério da Educação japonês vem estudando, a propósito, a possibilidade de não oferecer mais cursos gratuitos de sociologia, filosofia ou antropologia nas faculdades do Estado. Quem quiser estudar essas disciplinas deverá procurar uma bolsa — ou então pagar pelo curso que pretende fazer. A ideia central é permitir que a sociedade japonesa, cada vez mais, pague apenas o ensino universitário que dê um retorno mais objetivo para o bem-estar da maioria. Na Índia, numa situação diferente, o poder público incentiva diretamente o aprendizado superior de matemática e das disciplinas tecnológicas. São exceções, é claro, e é apenas um começo. Mas certamente é um tema para avaliação de todos os que têm preocupações genuínas com a educação no Brasil — e não concordam com a liquidação da universidade pública em favor de interesses particulares, sob o disfarce da ideologia, do que é politicamente correto (e pessoalmente vantajoso) e da devoção ao “campo progressista”.

Título e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, nº 45, 29-1-2020

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