Aparecido Raimundo de Souza
Mas o
nosso Alpheu, com ‘PH’, sem tirar nem por, fora o escolhido. Homem sério, até
seu relógio interno seguia as regras do excelente. Sem nenhuma mancha que
tornasse seu passado obscuro, servia de chacota e de gozação para os amigos. Na
verdade, um espectador inocente, figura ridícula pela maneira por que se
deixava, sobretudo, escravizar com as barbáries e investidas dos idiotas que se
diziam e se proclamavam ‘seus chegados’: ‘Você é o cara, mano —, afirmava um’.
Este ‘cara é você’ —, ajuntava outro. Por conta deste ‘cara sou eu’, o
homenzarrão queria morrer. Tirando esta particularidade, Alpheu, com ‘PH’, um
santo. Do pau oco, mas santo. Bom pai, ótimo marido e seleto companheiro,
principalmente com os colegas de trabalho. O patrão o adorava. Seu trajeto, nos
trezentos e sessenta e cinco dias do ano... Apenas um. Com uma variante.
De casa
para o trabalho e do trabalho para casa. Nada mudava a sua rota. A vida, para
ele, se fazia mais obsessiva que as liquidações das Lojas Renner, anunciando
seus auspiciosos e chamativos Brack Fridays. Alpheu, com ‘PH’, como todo ser
humano perfeitamente imperfeito, claro, exatamente por ser humano, tinha
(apesar dos pesares e da vidinha reta e sem nódoas), cinco defeitos
inquestionáveis. Primeiro deles. Gostava de fazer filhos. Por conta desta vida
desregrada, no escuro de quatro paredes, enrodilhado com a sua metade gostosa
do casamento, a Belinha, e gozando, com ela, os prazeres das fogosidades
calientes, trouxera, à luz, em consequência das viradas de olhinhos, nove
boquinhas para dar de beber e comer. Nove. Imaginem só! O segundo defeito. Ao
sair do trabalho (pegava às cinco da manhã, na padaria do português Manuel
Joaquim, parava uma hora para almoçar e, quinze minutos, para engolir o café
servido como lanche).
Largava, o batente, às dezessete horas. Todo santo dia, esta rotina enervante. O terceiro defeito. O pior deles. Antes de chegar em casa, vinha a variante acima citada. Alpheu, com ‘PH’, passava, impreterivelmente, pelo boteco do Aristeu da Conceição (duas quadras de onde morava) e, uma vez ali, alagava os bofes, tomando todas as purinhas com seus amigos de copos. Ficava enraivecido, porque, nesta hora, os falsos amigos das garrafadas zoavam da sua vida certinha, cantando ‘Este cara sou eu’, do Roberto Carlos. Alpheu, com ‘PH’, ficava pra morrer. Odiava, com todas as forças, esta canção e, se tivesse poder, pegava seus parceiros e os mandava para verem Papai do céu antes da hora marcada. Um suplício mal parido de que não cogitou, em nenhum momento, a sua postura de cidadão de bem.
Quarto
defeito. Chegava, em casa, por volta das vinte e uma e o fazia, aos tropeços,
chamando urubu de Nego do Borel e confundindo os postes, com os mourões das
cercas de arame ao longo da avenida. Morava quase no final dela, num bonito
sobrado de alvenaria que lhe fora deixado, de herença, pelos pais falecidos.
Ainda no jardim, ao ouvir o som das crianças jogando em frente a televisão, ato
contínuo, pintava o quinto defeito. A criatura então soltava a âncora,
deixando, à mostra, um temperamento virulento. Em nome deste drástico
frenético, se fazia acessível aos desastres do horror. Arrancava, do cinto da
calça e pulava, num gingado à Jackie Chan, metendo, sem dó nem piedade, um
punhado de pancadas nos costados dos pobrezinhos. Neste pega pra capar, os
quatro garotos, com as idades de sete, nove, treze, e quinze anos, bem ainda,
em igual número, as meninas, com dez, onze, quatorze, e dezessete, debandavam,
em solitários impulsos, cada um para seu quadrado, os respectivos fundilhos
pegando fogo, além das pernas e braços em carne viva. Coisa de meio minuto. O
bastante, para a gurizada dispersar, se escondendo, entre choros e atropelos,
fora do real, todavia, em uma asselvajada realidade adentro.
Este
sistema abrupto, não mudava nunca. Bastava por os pés no alpendre, o coro
começava a comer e se esparramar solto nas oito crianças. Alto lá: não somavam
nove? Sim, isto mesmo, nove. A mais nova, a Aninha, de cinco anos, não
alimentava o hábito de ficar jogando com os irmãos. Dava oito horas, a lindinha
saia de cena e partia para a horizontal. Por certo, se estivesse entre os consanguíneos, não escaparia das
perversidades do Alpheu, com ‘PH’. Belinha, coitada, a esposa aflita, vinha lá
de dentro, correndo, apavorada (às vezes, com uma tigela cheia de pipocas nas
mãos, ou uma garrafa de refrigerante) e, ao se deparar com o bafafá, se
intrometia, às cegas, para cima do marido, pedindo a ele, aos gritos
vociferados, que não agisse daquela forma com seus rebentos.
Afinal de
contas, eles não tinham culpa de terem sido postos no mundo:
— Alpheu,
pelo amor de Deus —, separava, ou tentava. Pare de tratar as suas crias deste
jeito. Eles não estavam fazendo nada, só jogando. Deixe de ser violento.
Respeite a sua família, em nome do Senhor Jesus. Que loucura! Todo santo dia
este perrengue... Olhe pela janela. Nossos vizinhos, boquiabertos e pasmos, presenciando os descalabros das suas malditas biritas.
Alpheu,
com ‘PH’, no seu intenso sentimento de ódio descomedido, na danação de
distribuir cintadas, às vezes acertava a pobre mulher onde não devia.
Mesmo
ferida, braços e pernas, ou onde pegasse as correadas, a piedosa e santa mãe,
não deixava de se impor. Alpheu, com ‘PH’, sequer dava ouvidos aos seus
clamores e lamúrias. Cansado de distribuir porradas, o pinguço saia
cambaleando, segurando aqui e acolá e acorria para o banheiro. Antes de fechar
a porta, deixava sintetizado, à esposa ultrajada:
— Não se
esqueça: Alpheu, sua vadia... Alpheu com ‘PH’.
Belinha,
ofendida e insultada na sua moral, apesar dos safanões e arranhões, não abria a
guarda. Resmungava, xingava, chorava, e para extravasar as suas inquietações,
geralmente mandava, junto com seus derrotismos, alguma coisa pesada, jogada com
força em direção ao embriagado:
— Vai para
os quintos, cão sarnento.
O tinhoso,
duro na queda, não arredava. Seguia sempre assim, sem nenhuma mudança. Em
parte, culpa da mulher. Ora, convenhamos. Sabendo que o marido não mudava seus
modos, em relação aos jogos, por que não exigia que as crianças jantassem e
subissem para dormir antes que o
tresloucado desse o ar da graça? Se tivesse se precavido... Aconteceu,
entretanto, que num final de semana, os meninos haviam acabado de chegar de uma
festinha de aniversário de um vizinho parede-meiado. Todos os nove. Por algum
motivo, até o presente momento não esclarecido devidamente, Alpheu, com ‘PH’,
saiu mais cedo da padaria. Passou pelo boteco, antes da hora prevista, e se
empanturrou, em rodadas à gostos apurados, com os amigos de sempre. Em seguida,
pegou o rumo de seu barraco. Ao chegar no portão, dali mesmo, ao ouvir as
risadas barulhentas vindas do interior da residência, não se fez de rogado.
Arrancou da cinta e...
...Meteu
os pés na porta e escancarou partindo para o ataque. Aos estropigaitados de ‘eu
mato’, pegou o primeiro, agarrou o segundo, esbofeteou o terceiro, socou o
quarto... Belinha, em contrapartida, se armou de uma cadeira e investiu contra
o desmiolado. Ele não se deteve. Seguiu mandando correadas e bordoadas no
quinto, no sexto... Belinha, braba (pensem numa fêmea endiabrada), quebrou uma
cadeira nas pernas dele. Entretanto, esta medida, não se fez objetiva pelo
menos para fazê-lo parar. Alpheu, com ‘PH’, não se intimidou. Correu para o
sétimo, grudou nos peitos do oitavo, derrubou o quinto...
Voltou
para o segundo... Aplicou uma rasteira no oitavo... Quando, avistou, num canto,
a nona, ou seja, a Aninha, a coitadinha agachada, chorosa e assustadíssima, as
mãozinhas cobrindo suas estremeções. Alpheu, com ‘PH’, voou feito um leão
faminto para deitar o sarrafo na brejeira:
— Até que
enfim, esta maldita, hoje, está no bolo. Saiba, praguinha dos infernos, que de
agora você não me escapa. Vai apanhar dobrado. Faz tempo que não boto os
sentidos em seu magérrimo esqueleto...
Belinha,
ao ouvir estas palavras, chegou ao ápice do seu desespero. Alcançou os píncaros
do seu furor. Galgou às cumeadas das contrariedades que a dominavam e a fizeram
crescer na sua cólera interior. Como um raio, passou as mãos num vaso de flores
enorme e pesado (mais robusto que a consciência de Rodrigo Maia), que
descansava, solitário, sobre uma mesinha de centro, e mandou direto nos cornos
de sua parte podre da maçã. Alpheu, com ‘PH’, titubeou. Tentou ir em frente.
Qual o quê! Ensaiou alguns passos. Inútil. Desabou, caindo de joelhos, o sangue
jorrando abundantemente em meio à sua testa:
Antes de
sair do ar, de vez, ouviu estas palavras da sua linda consorte:
— Na minha
caçulinha, seu verme peçonhento, você não encosta as patas. Esta ai, seu corno
safado, não é sua filha.
Título e
Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 26-1-2021
Colunas anteriores:
A vara de vimeiro
Retrato de um crápula
Vassouras atrás da porta
Apesar do tempo, ainda dançando sobre cacos de vidros
A SEVERINA XIQUE-XIQUE emudeceu
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-