sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] O fescenino do caráter ruim

Aparecido Raimundo de Souza

ESTAVA UMA NOITE CALIDAMENTE deliciosa e cheia de estrelas por todo o firmamento contemplando a meia lua pérfida. Um vento inebriava o ar com perfumes noturnos, enquanto, lá longe, um cão vadio ladrava ruidosamente à passagem de alguns retardatários.

Bianca, de olhos facetados, parecia absorta em pensamentos longínquos. Uma espécie de vazio lânguido, lhe dava ares inexplicáveis de mulher envelhecida, embora, na verdade, não contasse mais de dezoito anos.

Num gesto desencorajado, a moça desviou a atenção para um ruído distante, crescente à medida que se aproximava de seus ouvidos. Logo a seguir, divisou um carro e, dentro dele, a figura de um rapaz alto e corpulento, os cabelos negros e bem compridos.

À luz reflexa da lua, num primeiro momento, lhe deu a impressão de um náufrago voltando à superfície depois de se debater inutilmente contra as correntezas de um mar bravio e de águas revoltas.

Alguma coisa ameaçadora pairava na atmosfera. Era como se um temor torturante e embaraçoso tangesse a âmago da garota, interpondo, à medida que o rapaz se aproximava, milhas e milhas de distâncias bem sólidas e irremovíveis.

O rapaz acabou de chegar. Desligou o carro, abriu a porta e saiu calmamente. Deu alguns passos e parou frente à ela, sem fazer barulho. Trazia um olhar esquisito no rosto magro, encoberto por uma máscara rala de barba por fazer. Esperou um instante, antes de invocar a questão que o trouxera até ali naquele canto ermo da cidade.

Enquanto isto, Bianca o fuzilou com um olhar de desprezo e pouco caso. Na verdade, ela queria tudo, na vida, menos tornar a encontrar, frente a frente, aquele maldito sujeito infame, vil e asqueroso.

Vagabundo e pilantra, vazio e sem graça, Lázaro vivia seguindo Bianca desde o portão quando da saída da faculdade, nas missas de domingo, na pracinha, nos barzinhos, na porta do prédio onde ela trabalhava, e até mesmo quando ela resolvia dar uma escapada no shopping, junto com as amigas. O olhar de Lázaro trazia sempre propósitos sujos e indecorosos.

Bianca, no fundo, nutria, por aquele infeliz, uma aversão doentia. Bastava ouvir seu nome ou topar com ele escondido, entre os carros, observando seus passos e o dia, por mais bonito que estivesse, como por uma infelicidade medonha, apodrecia no horizonte.

Contudo, alguma coisa mais forte que ela impelia a se dirigir para o lugar do tal encontro onde ele havia marcado. Uma voz, vinda de dentro da sua alma, dizia ser preciso comparecer.

Ademais, esta mesma voz, sinalizava que seria aquela a derradeira vez que estaria ao lado daquele elemento pegajoso. Não havia, em hipóteses nenhuma, possibilidades de tal fato tornar a ocorrer.

Lutando contra seus medos e receios, pondo de lado os princípios que regiam a sua vida perante a sociedade da pacata cidadezinha onde vivia com os pais e uma tia em idade avançada, a moça, livre e descompromissada resolveu, finalmente, aderir às vontades daquele louco.

Imbuída de uma força sobrenatural, partiu, resoluta, para o local previamente acordado por telefone. A localidade (uma zona neutra) indicada por ele, à sua casa, algumas horas antes do evento. Desta forma, ali estava ela. Se achava vivendo e experimentando uma sensação estranha e mal pressagiada.

Diante da figura máscula de Lázaro, ela tinha vontade de esbofetear a sua cara. Uma onda bizarra de incerteza e desassossego lhe invadiu o corpo. Totalmente desprotegida, se julgava, igualmente só e triste, melancólica e perdida.

Sobretudo, perdida. E por quê? Deus do céu! Por que havia, realmente, tomado aquela resolução de se fazer presente, quando a sua vontade se constituía em estar a milhões de quilômetros dali? O rapaz se aproximou um pouco mais para perto dela:

— Bianca, eu vim até aqui para dizer que desde que a vi, nunca mais parei de pensar em você. EU TE AMO!

Neste ‘eu te amo’, havia uma esquisita nota de ameaça inexplicável, que, de pronto, ela não entendeu muito bem. E ele, sem esperar por resposta, continuou:

— Espero que tenha entendido o que acabei de lhe dizer. Vou repetir, para que não se esqueça e grave bem. Bianca, EU TE AMO!

No mesmo tom de voz, Bianca gritou que também o amava. Precisava concordar com ele, ainda que a toque de caixa, querendo vomitar as tripas. Talvez, desta forma, descobrisse as reais intenções do delinquente. A sua respiração ficara curta e, ao mesmo tempo, apressada, como se tivesse chegado correndo e, de repente, estancasse os passos, abruptamente.

Antes de soltar o que pretendia dizer, engoliu saliva, sentindo, neste momento, uma malfadada apreensão, como se imaginasse que, no instante seguinte, seu coração fosse parar de bater e saltar de dentro do peito.

Prisioneira, acorrentada submissada neste incômodo indigesto, não deu o braço a torcer. Continuou firme, sem tirar os olhos do rosto do rapaz e levou adiante o que se propusera a dizer:

— Eu também te amo. Te amo muito, desde que o vi pela primeira vez. Desde então, não consigo tirar você da minha cabeça’. EU TE AMO, LÁZARO, completou, por fim.

O rapaz, então, num ato jamais imaginado, levantou a camisa e puxou de um revolver que trazia à altura do umbigo, preso ao cinto. Disparou, a queima roupa, três tiros à altura do coração da pobre desvalida. Bianca caiu fulminada, ferida mortalmente, sem condições nenhuma de se defender.

Em seguida, Lázaro desviou o cano da arma para a sua própria boca e puxou o gatilho. Seu corpo sem vida caiu sobre o de Bianca. Ambos, em questão de segundos, se irmanaram numa espécie de abraço desigual, contrastados por uma enorme poça de sangue.

O céu, no infinito, cheio de estrelas, alumiado por uma lua radiosa, dava a impressão de incendiar todo o firmamento acima dos dois. Um silêncio funesto e lutuoso, infausto e consternado se fez denso. Neste quadro indescritível o sepulcral simplesmente tomou conta de tudo.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 29-1-2021

Colunas anteriores:
Invenção de espanto
A vara de vimeiro
Retrato de um crápula
Vassouras atrás da porta
Apesar do tempo, ainda dançando sobre cacos de vidros

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-