Aparecido Raimundo de Souza
Bianca, de
olhos facetados, parecia absorta em pensamentos longínquos. Uma espécie de
vazio lânguido, lhe dava ares inexplicáveis de mulher envelhecida, embora, na
verdade, não contasse mais de dezoito anos.
Num gesto
desencorajado, a moça desviou a atenção para um ruído distante, crescente à
medida que se aproximava de seus ouvidos. Logo a seguir, divisou um carro e,
dentro dele, a figura de um rapaz alto e corpulento, os cabelos negros e bem
compridos.
À luz
reflexa da lua, num primeiro momento, lhe deu a impressão de um náufrago
voltando à superfície depois de se debater inutilmente contra as correntezas de
um mar bravio e de águas revoltas.
Alguma
coisa ameaçadora pairava na atmosfera. Era como se um temor torturante e
embaraçoso tangesse a âmago da garota, interpondo, à medida que o rapaz se
aproximava, milhas e milhas de distâncias bem sólidas e irremovíveis.
O rapaz
acabou de chegar. Desligou o carro, abriu a porta e saiu calmamente. Deu alguns
passos e parou frente à ela, sem fazer barulho. Trazia um olhar esquisito no
rosto magro, encoberto por uma máscara rala de barba por fazer. Esperou um
instante, antes de invocar a questão que o trouxera até ali naquele canto ermo
da cidade.
Enquanto
isto, Bianca o fuzilou com um olhar de desprezo e pouco caso. Na verdade, ela
queria tudo, na vida, menos tornar a encontrar, frente a frente, aquele maldito
sujeito infame, vil e asqueroso.
Vagabundo
e pilantra, vazio e sem graça, Lázaro vivia seguindo Bianca desde o portão
quando da saída da faculdade, nas missas de domingo, na pracinha, nos
barzinhos, na porta do prédio onde ela trabalhava, e até mesmo quando ela
resolvia dar uma escapada no shopping, junto com as amigas. O olhar de Lázaro
trazia sempre propósitos sujos e indecorosos.
Bianca, no fundo, nutria, por aquele infeliz, uma aversão doentia. Bastava ouvir seu nome ou topar com ele escondido, entre os carros, observando seus passos e o dia, por mais bonito que estivesse, como por uma infelicidade medonha, apodrecia no horizonte.
Contudo,
alguma coisa mais forte que ela impelia a se dirigir para o lugar do tal
encontro onde ele havia marcado. Uma voz, vinda de dentro da sua alma, dizia
ser preciso comparecer.
Ademais,
esta mesma voz, sinalizava que seria aquela a derradeira vez que estaria ao
lado daquele elemento pegajoso. Não havia, em hipóteses nenhuma, possibilidades
de tal fato tornar a ocorrer.
Lutando
contra seus medos e receios, pondo de lado os princípios que regiam a sua vida
perante a sociedade da pacata cidadezinha onde vivia com os pais e uma tia em
idade avançada, a moça, livre e descompromissada resolveu, finalmente, aderir
às vontades daquele louco.
Imbuída de
uma força sobrenatural, partiu, resoluta, para o local previamente acordado por
telefone. A localidade (uma zona neutra) indicada por ele, à sua casa, algumas
horas antes do evento. Desta forma, ali estava ela. Se achava vivendo e
experimentando uma sensação estranha e mal pressagiada.
Diante da
figura máscula de Lázaro, ela tinha vontade de esbofetear a sua cara. Uma onda
bizarra de incerteza e desassossego lhe invadiu o corpo. Totalmente
desprotegida, se julgava, igualmente só e triste, melancólica e perdida.
Sobretudo,
perdida. E por quê? Deus do céu! Por que havia, realmente, tomado aquela
resolução de se fazer presente, quando a sua vontade se constituía em estar a
milhões de quilômetros dali? O rapaz se aproximou um pouco mais para perto
dela:
— Bianca,
eu vim até aqui para dizer que desde que a vi, nunca mais parei de pensar em
você. EU TE AMO!
Neste ‘eu
te amo’, havia uma esquisita nota de ameaça inexplicável, que, de pronto, ela
não entendeu muito bem. E ele, sem esperar por resposta, continuou:
— Espero
que tenha entendido o que acabei de lhe dizer. Vou repetir, para que não se
esqueça e grave bem. Bianca, EU TE AMO!
No mesmo tom
de voz, Bianca gritou que também o amava. Precisava concordar com ele, ainda
que a toque de caixa, querendo vomitar as tripas. Talvez, desta forma,
descobrisse as reais intenções do delinquente. A sua respiração ficara curta e,
ao mesmo tempo, apressada, como se tivesse chegado correndo e, de repente,
estancasse os passos, abruptamente.
Antes de
soltar o que pretendia dizer, engoliu saliva, sentindo, neste momento, uma
malfadada apreensão, como se imaginasse que, no instante seguinte, seu coração
fosse parar de bater e saltar de dentro do peito.
Prisioneira,
acorrentada submissada neste incômodo indigesto, não deu o braço a torcer.
Continuou firme, sem tirar os olhos do rosto do rapaz e levou adiante o que se
propusera a dizer:
— Eu
também te amo. Te amo muito, desde que o vi pela primeira vez. Desde então, não
consigo tirar você da minha cabeça’. EU TE AMO, LÁZARO, completou, por fim.
O rapaz,
então, num ato jamais imaginado, levantou a camisa e puxou de um revolver que
trazia à altura do umbigo, preso ao cinto. Disparou, a queima roupa, três tiros
à altura do coração da pobre desvalida. Bianca caiu fulminada, ferida
mortalmente, sem condições nenhuma de se defender.
Em
seguida, Lázaro desviou o cano da arma para a sua própria boca e puxou o
gatilho. Seu corpo sem vida caiu sobre o de Bianca. Ambos, em questão de
segundos, se irmanaram numa espécie de abraço desigual, contrastados por uma
enorme poça de sangue.
O céu, no
infinito, cheio de estrelas, alumiado por uma lua radiosa, dava a impressão de
incendiar todo o firmamento acima dos dois. Um silêncio funesto e lutuoso,
infausto e consternado se fez denso. Neste quadro indescritível o sepulcral
simplesmente tomou conta de tudo.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 29-1-2021
Colunas anteriores:Invenção de espanto
A vara de vimeiro
Retrato de um crápula
Vassouras atrás da porta
Apesar do tempo, ainda dançando sobre cacos de vidros
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-