Aparecido Raimundo de Souza
Sempre se
fez duro e cruel, tempestivo e aparvalhado, irrequieto e nojoso, um verdadeiro
germe peçonhento e intragável. Comparado com alguém da pré-história, certamente
estaria assemelhado à imagem daqueles homens macedônicos. Para os que não
sabem, essas figuras desfrutavam, na época, de má fama e baixa reputação
social, principalmente entre os guerreiros atenienses que as odiavam
mortalmente, porque além de serem grosseiras e bárbaras, negavam a divindade do
Espírito Santo. Assim, pois, se apresenta o sujeito à sociedade e aos que, em
pequenas proporções, dele se acercam, para os contatos do dia a dia.
Ele sente,
nestas criaturas, a bem da verdade, uma distância obumblada, densa e pesada.
Capta, em seus olhares, um medo mórbido, tal como se carregasse, consigo,
alguma doença infectocontagiosa. Parece que a maioria foge à sua aproximação,
virando-lhe, ou abaixando, temerosamente os olhos para o chão. É como se, de
repente, ao depararem com seu aspecto enigmático, as pessoas, aos seus calcanhares,
ficassem petrificadas, transidas e neutralizadas de pavor, tal como se
encostadas a um paredão invisível bem ao frontispício de seus narizes. Cá entre
nós, bem sabemos, já pensou em mudar... E como pensou!...
Num
primeiro momento, imaginou-se saindo desabalado, correndo da rotina enervante e
debilitada, acordando, inteiro, para uma realidade nova; bonita; adormecida há
anos; dentro de seu coração despedaçado. Do fundo do poço abaçanado onde vegeta
seus dias, uma voz meiga e suave, sussurra em sua mente, afirmando que, se lhe
fosse dada à chance de mergulhar, de corpo inteiro, num fogo purificador, dele
escaparia de alma renovada, modificada, restabelecida, regenerada, imbuída num
espírito firme, com nova afeição e vontade de seguir em frente.
As negras nuvens que pesam sobre a sua cabeça se desfazeriam com o vento, dando lugar a um céu bonito, intercalado a um infinito de matizes resplandecentes e, claro, com tonalidades alegres e aprazíveis. Por conseguinte, o destino não seria como é, repulsivo, obscuro, tremendamente sombrio e ababeladamente aterrador. Porém, ele sabe estar muito longe da era de Apolo Pítio, o Deus da eloquência e da eterna mocidade, que conduzia o carro de sol e chefiava as nove musas —, a mesma divindade que aceitava —, em sacrifícios, galos, cisnes e gaviões... Se fosse naquele tempo, ou se pudesse voltar à ele, iria até Delfos consultar o oráculo.
Uma vez
lá, pediria à Pitonisa, que arranjasse um meio de reprogramar os rumos de sua
existência e, consequentemente, do fadário despiedoso e cruel que o persegue e
amofina. Claro que também imploraria por um porvir melhor, menos agressivo e
hostil. Esta sucessão de anos, entretanto, ficou distante, perdida nas
histórias dos livros mitológicos. Tem consciência, ser um homem amargurado,
desnorteado e afastado do Universo normal dos indivíduos equilibrados. Sabe que
nasceu torto, cresceu errado, andou por estradas sinuosas e nunca chegou à
lugar nenhum. E talvez, no pior dos orbes, nunca chegue onde realmente deseja.
O destino,
malévolo e pravo, fez do seu pequeno espaço restrito, hospedaria de um leque
enorme de intransigências mil, todas a abrir malquerências descomedidas num
espocar sem fim de insucessos e confusões. Foi, por esta razão, que embruteceu
de vez. Que atraiu a ira enraivecida dos corações que o amam. Quiçá, tudo isto
explique o atirar incessante de dardos venenosos às meiguices e bondades que
recebe.
Em
verdade, por ter sorvido a largos haustos somente as sensações doentias e
viciadas, considere-se um enclausurado do passado, tal e qual um daqueles
gladiadores antigos, vestimentado com a sua armadura de hoplita, amparado pela ausência de mãos amigas que jamais lhe
acarinharam o semblante contristado pela desilusão brutal que o cega e não só
isto, consome as suas entranhas. Este “ontem”, na verdade, fere-lhe com
sarissas pontiagudas o peito aberto em chagas, machuca a sua alma num ritual
quase demoníaco. Sua cabeça esconde-se entre as mãos decaídas de vergonha.
Ele sente,
talvez, medo de olhar para si mesmo. Fraqueza gigantesca de sair de dentro dos
muros altos que o cercam, que o aprisionam. Quem sabe, uma pusilanimidade
abambalhada, por se defrontar, constantemente, com fantasmas iracundos,
trazendo à baila devaneios de lembranças adormecidas, efetivamente o tenha
matado aos poucos, lhe derreado numa agonia lenta e letal, atrelada, ainda, a
uma flagelação desinquieta e devagar, traiçoeira e pérfida, consumindo sua paz
lentamente, sem nenhum acaso favorável que o faça sentir-se um pouquinho só, um
pouquinho só, que seja, completamente realizado e feliz.
Todavia,
neste momento cruciforme, por algum motivo ainda não desvendado, ele resolveu
seguir por novas sendas, apesar de todos os percalços intermediados à sua
frente. Em razão desta abertura, não perderá mais tempo. Procurará se divorciar
das agruras. Ir adiante, deslanchar, custe
o que custar, apesar de todos lhe virarem os rostos, envergonhados por fazerem
parte da mesma comunidade. Seu lado bom despertou do marasmo e grita à alta
voz, brada, protesta para que não desista. Apesar dos pesares, dos traumas e
medos, desconfortos e desarmonias que ainda tentam se interpor, minando, de última
hora, a sua decisão, ele não desistirá. Não agora. A sua vida sempre foi como
um eterno mar proceloso.
Porém, hoje, incrivelmente hoje, as águas turvas do seu oceano, as ondas negras da sua vida, inimaginavelmente se fizeram calmas como um lago rutilante, luciluzido ao sabor de um sol contagiante e imperturbado, pacato e sereno. Ele efetivamente sairá. Transporá, sem amarras, ainda que aos trancos e barrancos, as portas, galgará os muros altos que o encarceram, terçará os espectros e abantesmas que lhe tiram o ar, a força, o chão. Ele, hoje, aos quarenta e cinco, partirá em busca de si mesmo, afugentando o passado e buscando, imoderadamente o seu maior sonho: SER REALIZADO E FELIZ.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 19-1-2021
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