Muita gente desconfia que o professor e o ministro não são uma pessoa só
Augusto Nunes
Quem lê um livro de Alexandre
de Moraes e ouve um improviso de Alexandre de Moraes desconfia que o professor
de Direito Constitucional e o ministro do Supremo Tribunal Federal não são uma
pessoa só. Muita gente continua acreditando na versão espalhada pelos
estudantes da Faculdade do Largo de São Francisco: os Alexandres formam uma
dupla de gêmeos separados ao nascer, que usam o mesmo nome só para confundir.
As dúvidas fazem sentido. Os textos que Alexandre publica são gentis com o
idioma tratado com ferocidade pelo Alexandre que fala (sem
um papelório nas mãos). Os livros que assinou têm sido fonte de
consulta para incontáveis advogados em gestação. Os
improvisos são tão imprestáveis quanto as discurseiras de Lula.
A espécie a que pertence
Alexandre de Moraes, convém ressalvar, não deve ser confundida com a
tribo que tem no ex-presidente presidiário um pajé
exemplar. Quando Lula agarra um microfone, a gramática se
refugia na embaixada portuguesa, a concordância se asila em velhos
dicionários, a regência verbal se esconde no sótão da escola abandonada, o
raciocínio lógico providencia um copo de estricnina sem gelo, a razão pede a
proteção da ONU para livrar-se de outra sessão de tortura, os plurais saem
em desabalada carreira e a verdade se dirige à delegacia mais próxima para
jurar que é mentira. O ministro Alexandre também guilhotina SS e RR, declama
maluquices com a pose de quem está fazendo um pronunciamento à nação,
muda de ideia conforme as circunstâncias e mente mais do que respira. Mas Lula
é da turma que fugiu da escola e se orgulha da ignorância vitoriosa. Alexandre
diplomou-se nas Arcadas e virou professor no Largo de São Francisco.
Para seviciar o português, vale-se de um repertório maior que o
vocabulário de 300 palavras decoradas pelo palanque ambulante.
O ministro do Supremo tampouco se enquadra na linhagem de Dilma Rousseff — até porque ninguém mais no mundo sabe falar o subdialeto que a ex-presidente inventou, muito menos suas ramificações. Há o dilmês rústico, o vulgar, o castiço e o erudito. Ela domina todas essas formas complicadíssimas de não dizer coisa com coisa. Numa recente live no Instagram, por exemplo, discorreu sobre o vírus chinês. Cientistas, governantes, negacionistas incuráveis, crédulos de nascença, vacinados e infectados continuam sem saber direito o que está acontecendo. Dilma, que nada sabe sobre tudo, entrou no assunto com a segurança de Ph.D. em pandemia. “Nós estamos enfrentando um vírus com a capacidade de transmissão muito… muito… solerte”, decolou a ex-presidente, que em seguida tentou traduzir o que acabara de dizer: “Ele é… é… é esperto. O vírus chega devagarzinho… fica… tem um tempo de incubação significativo e pode, portanto, surpreender”. Em seguida, prescreve a receita para combater o inimigo invisível: “Esse método é o isolamento social. E o isolamento social é horizontal”. E se antecipa à pergunta que perturba as cabeças na plateia: “Por que que é horizontal? Porque as famílias são horizontais. Você tem as famílias… tem várias gradações”.
Não há outra maneira de ganhar
a guerra, insiste Dilma, que em seguida capricha no fecho
glorioso: “Até que toda essa busca por uma vacina resulte em algo concreto, ou
que se tenha um vácuo capaz de tratar essa doença, nós teríamos só essa forma
de lidar com ela. Primeiro porque, caso contrário, todos os modelos matemáticos
mostram que, se você não fizer nada, o nível de mortandade é algo estarrecedor,
na faixa de 1 milhão de pessoas”. Alguém aí entendeu? Ninguém? Não se
preocupem. A moça no alto da tela que tenta traduzir a discurseira em linguagem
de Libras também não está entendendo nada. E a própria Dilma certamente não
entende o que diz. Alexandre de Moraes, é verdade, também estaciona em
reticências sem rumo, tropeça em vírgulas bêbadas, escava fossos entre sujeito
e predicado, junta palavras que não conversam entre si e produz sopas
de letras intragáveis. Mas seria injusto equipará-lo à singularíssima criadora
do dilmês.
O clube que Alexandre
frequenta abrange, por exemplo, os que nunca chegam a alguma cidade. Sempre
chegam em. Também são sócios eméritos os que jamais entenderão a diferença
entre onde e aonde, ou que os dois advérbios se referem a algum lugar, nunca a
um espaço de tempo. “Estou falando da semana aonde me encontrei com o
governador”, disse o candidato a ministro, mais de uma vez, na sabatina no
Senado que chancelou sua indicação para a vaga aberta pela morte de Teori
Zavascki. O escolhido por Michel Temer seria reprovado em qualquer prova oral
para ingresso na magistratura. Os senadores validaram sorrindo a indicação,
fingindo que haviam compreendido o falatório truncado por travessões que
transformaram as falas do sabatinado numa enxurrada de frases que nunca
chegavam ao fim.
Neste fevereiro, o carrasco de
vogais e consoantes conseguiu que os dez ministros que completam o Timão da
Toga aprovassem por unanimidade duas invencionices que produziu para consumar a
prisão ilegal do deputado Daniel Silveira. Ao expedir um mandado de prisão em
flagrante, e justificá-lo com a fantasiosa teoria de que a
flagrância só se encerraria quando fosse banido da internet o
vídeo promovido a prova do crime, o ministro criou o flagrante eterno. Ao
decidir que há limites para o artigo da Constituição segundo o qual nada do que
diz um congressista pode ser enquadrado como crime, concebeu a imunidade
relativa. Deve ser prima da democracia relativa proclamada pelo
general-presidente Ernesto Geisel nos anos 1970.
Pensando bem, o enigma
dos Alexandres nada tem de misterioso para quem sabe como nascem
certos livros. Para textos, basta contratar um ghost writer discreto
e um revisor atento. Improvisos verbais não podem ser terceirizados. Existe um
único Alexandre, o torturador do idioma. Só uns poucos jornalistas
bem-humorados insistem na tese dos gêmeos univitelinos. Esses juram que, no
momento da separação, o Alexandre que escreve levou também o cérebro do
Alexandre que fala.
Título e Texto: Augusto Nunes, revista Oeste, nº 49, 26-2-2021
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Ambos, ministro e professor, trocados por um bom punhado de excremento, prefiro o excremento. Fede menos. Pelo menos serve para adubar a terra.
ResponderExcluirCarina Bratt
Ca
Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro.