Arrasar brasões ou defender o racismo como exclusivo dos brancos não são doidices, mas sim as peças soltas da obra de desconstrução da sociedade livre. A PSP e os tribunais são os próximos alvos
Helena Matos
Mas coloquemos a questão de outro
modo: a senhora inspetora-geral teria coragem para dar outros exemplos? Ou que
os poderia dar sem que se armasse uma polémica viral? E será que pode
esclarecer o que leva a que os concursos de recrutamento para a PSP estejam a
confrontar-se com uma até agora inédita falta de candidatos? Recordo que em
2020 das mil vagas ficaram mais de 200 por preencher porque não apareceram
candidatos!
Mas o “por exemplo” da senhora inspetora-geral não se esgota na questão do recrutamento dos futuros agentes da PSP, leva-nos também ao ente politicamente mais útil deste momento, o tal “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca”. Este indivíduo, como a inspetora-geral bem sabe e prova com os exemplos que escolheu dar, faz parte do equipamento básico de quem agora está na vida pública e política: no tempo em que era de bom tom sair de casa logo pela manhã havia quem não conseguisse pôr o pé na rua sem levar consigo um chapéu de chuva, agora ninguém dá um passo na política sem ter ao lado para anatemizar o tal “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca”.
Não interessa que o indivíduo não tenha feito nada pois tal como acontecia com os chapéus de chuva a sua função é estar lá para as emergências. Por exemplo, hoje mesmo precisa-se com urgência nas redações de um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca” para que seja devidamente noticiada a tentativa de degolação numa estação de serviço do Barreiro aum estudante de Medicina que se recusou a dar o seu lugar na fila de abastecimento a dois homens.
Enquanto não se conseguir responsabilizar um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca” pelo sucedido naquela estação de serviço dificilmente esta bárbara agressão sairá das páginas do “Correio da Manhã”.
Também se precisa com brevidade de
encontrar um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da
supremacia branca” para finalmente encontrar um responsável para as várias queixas por ameaças apresentadas
pelo BE e afins (não sei o que surpreende mais, se o frenesi queixinhas do BE, se a incapacidade da PJ para esclarecer o sucedido). Também dava jeito
encontrar um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da
supremacia branca” para culpar pelo falhanço da compra das vacinas pela UE,
pelo atraso na distribuição dos computadores pelos alunos portugueses, pelos
dados que o Governo não envia ao Conselho de Finanças Públicas ou pela provável
subida dos juros da dívida. Creio que não será difícil arranjar um qualquer incauto
que cumpra esse papel quanto mais não seja porque a dra. Ana Gomes arrebanhará
o Chega para o efeito.
Como é que chegámos a esta
tragédia grotesca? Como é que do combate ao racismo acabámos nesta armadilha do
racismo como um exclusivo dos brancos? Como é que da defesa da igualdade de
direitos entre homens e mulheres caímos no absurdo ficcional da identidade de
género? Como é que da condenação da censura passámos para a defesa da autocensura?…
Porque tudo aquilo que tratámos como doidices, que deixámos para discutir
depois, que encarámos como excentricidades de meia dúzia de lunáticos
(chamavam-lhes românticos revolucionários, lembram-se?) não eram apenas mais
uma maluquice, mas sim as peças soltas da obra de desconstrução da sociedade
livre que com mais ou menos falhas fomos durante algumas décadas do século
passado e no início deste.
A queda do Muro de Berlim e o
fim da URSS levaram a chamada esquerda democrática a perder o medo dos
comunistas e tornaram possíveis alianças entre maoístas, estalinistas,
trotskistas e os socialistas outrora admiradores de Olof Palme. Neste novo e
admirável mundo já ninguém acorda com medo de ver a sua empresa nacionalizada,
mas vivem-se noites de pesadelo a fazer contas sobre como conseguir pagar os
impostos, cumprir toda a legislação, não esquecer nenhum passo da burocracia. A
isto junta-se agora o medo do patrulhamento ideológico do que se disse no
passado, do confronto com o que fizeram os avós, de um deslize de linguagem…
Os objetivos revolucionários
foram substituídos por uma arrazoado de intenções que legitimam tudo e o seu
contrário. Expressões como “acabar com a discriminação”, “o combater as
desigualdades” ou a promoção da inclusão” tornaram-se no correspondente ao “por
amor” na boca dos homicidas: os mais perversos meios e os mais obscuros fins
são justificados através da invocação de um propósito aparentemente tão
consensual quanto indiscutível.
A propósito do que definiu
como “granítica ignorância da História” por parte de Ascenso Simões (sim, o
deputado socialista que lastima a falta de sangue no 25 de Abril e anseia pela
demolição do Padrão dos Descobrimentos), Fátima Bonifácio escreveu um
artigo intitulado “Perdoai-lhe, senhor, que não sabe o que diz“. O título é ótimo,
mas infelizmente a ignorância, sobretudo a granítica, não só não é casual como
é parte estrutural do que nos está a acontecer: estarmos nas mãos de gente que
não sabe o que diz, mas sabe muito bem que quer – o poder sobre as vidas dos
outros – como consegui-lo e sobretudo mantê-lo.
PS. Em 1961, os
jardineiros da autarquia de Lisboa conceberam sem dificuldades de maior os 32
brasões do jardim de Belém. Em 2021, a CML cujo quadro de pessoal atingiu os
astronómicos 13.068 postos de trabalho, alega que não tem pessoal qualificado
para manter esses canteiros.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 28-2-2021
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