domingo, 28 de fevereiro de 2021

Podem não saber o que dizem, mas sabem o que fazem e sobretudo o que querem: controlar tudo e todos

Arrasar brasões ou defender o racismo como exclusivo dos brancos não são doidices, mas sim as peças soltas da obra de desconstrução da sociedade livre. A PSP e os tribunais são os próximos alvos

Helena Matos


A coisa chegou envolta naquele palavreado dos amanhãs que cantam: “IGAI quer mudar recrutamento de polícias e rever formação para acabar com discriminação“. No caso concreto a intenção anunciada pela Inspeção-geral da Administração Interna de “acabar com discriminação” significa nada mais nada menos que o assumir de um claro controlo ideológico esquerdista no acesso à PSP: “Nos testes psicotécnicos [feitos no recrutamento] temos essa proposta de criar um grupo de trabalho que integre psicólogos de forma a poder criar uma grelha de testes que seja apta a captar a existência, por exemplo, de um indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca. Vamos convocar psicólogos para a área do recrutamento” – anunciou a inspetora-geral da Administração Interna, Anabela Cabral Ferreira. A senhora inspetora-geral nunca ouviu falar dos casos de racismo entre cabo-verdianos e guineenses em Portugal? Ou entre ciganos e negros? Não acha, por exemplo, a IGAI que “a grelha de testes” deve também captar estes casos? E a propósito de ideários por que referir o nazi e deixar de fora o comunista ou o fundamentalismo islâmico? É caso para dizer que a IGAI não está à procura de psicólogos, mas sim de controleiros!

Mas coloquemos a questão de outro modo: a senhora inspetora-geral teria coragem para dar outros exemplos? Ou que os poderia dar sem que se armasse uma polémica viral? E será que pode esclarecer o que leva a que os concursos de recrutamento para a PSP estejam a confrontar-se com uma até agora inédita falta de candidatos? Recordo que em 2020 das mil vagas ficaram mais de 200 por preencher porque não apareceram candidatos!

Mas o “por exemplo” da senhora inspetora-geral não se esgota na questão do recrutamento dos futuros agentes da PSP, leva-nos também ao ente politicamente mais útil deste momento, o tal “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca”. Este indivíduo, como a inspetora-geral bem sabe e prova com os exemplos que escolheu dar, faz parte do equipamento básico de quem agora está na vida pública e política: no tempo em que era de bom tom sair de casa logo pela manhã havia quem não conseguisse pôr o pé na rua sem levar consigo um chapéu de chuva, agora ninguém dá um passo na política sem ter ao lado para anatemizar o tal “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca”.

Não interessa que o indivíduo não tenha feito nada pois tal como acontecia com os chapéus de chuva a sua função é estar lá para as emergências. Por exemplo, hoje mesmo precisa-se com urgência nas redações de um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca” para que seja devidamente noticiada a tentativa de degolação numa estação de serviço do Barreiro aum estudante de Medicina que se recusou a dar o seu lugar na fila de abastecimento a dois homens

Enquanto não se conseguir responsabilizar um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca” pelo sucedido naquela estação de serviço dificilmente esta bárbara agressão sairá das páginas do “Correio da Manhã”. 

Também se precisa com brevidade de encontrar um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca” para finalmente encontrar um responsável para as várias queixas por ameaças apresentadas pelo BE e afins (não sei o que surpreende mais, se o frenesi queixinhas do BE, se a incapacidade da PJ para esclarecer o sucedido). Também dava jeito encontrar um “indivíduo que tenha um ideário nazi ou que seja adepto da supremacia branca” para culpar pelo falhanço da compra das vacinas pela UE, pelo atraso na distribuição dos computadores pelos alunos portugueses, pelos dados que o Governo não envia ao Conselho de Finanças Públicas ou pela provável subida dos juros da dívida. Creio que não será difícil arranjar um qualquer incauto que cumpra esse papel quanto mais não seja porque a dra. Ana Gomes arrebanhará o Chega para o efeito.

Como é que chegámos a esta tragédia grotesca? Como é que do combate ao racismo acabámos nesta armadilha do racismo como um exclusivo dos brancos? Como é que da defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres caímos no absurdo ficcional da identidade de género? Como é que da condenação da censura passámos para a defesa da autocensura?… Porque tudo aquilo que tratámos como doidices, que deixámos para discutir depois, que encarámos como excentricidades de meia dúzia de lunáticos (chamavam-lhes românticos revolucionários, lembram-se?) não eram apenas mais uma maluquice, mas sim as peças soltas da obra de desconstrução da sociedade livre que com mais ou menos falhas fomos durante algumas décadas do século passado e no início deste.

A queda do Muro de Berlim e o fim da URSS levaram a chamada esquerda democrática a perder o medo dos comunistas e tornaram possíveis alianças entre maoístas, estalinistas, trotskistas e os socialistas outrora admiradores de Olof Palme. Neste novo e admirável mundo já ninguém acorda com medo de ver a sua empresa nacionalizada, mas vivem-se noites de pesadelo a fazer contas sobre como conseguir pagar os impostos, cumprir toda a legislação, não esquecer nenhum passo da burocracia. A isto junta-se agora o medo do patrulhamento ideológico do que se disse no passado, do confronto com o que fizeram os avós, de um deslize de linguagem…

Os objetivos revolucionários foram substituídos por uma arrazoado de intenções que legitimam tudo e o seu contrário. Expressões como “acabar com a discriminação”, “o combater as desigualdades” ou a promoção da inclusão” tornaram-se no correspondente ao “por amor” na boca dos homicidas: os mais perversos meios e os mais obscuros fins são justificados através da invocação de um propósito aparentemente tão consensual quanto indiscutível.

A propósito do que definiu como “granítica ignorância da História” por parte de Ascenso Simões (sim, o deputado socialista que lastima a falta de sangue no 25 de Abril e anseia pela demolição do Padrão dos Descobrimentos), Fátima Bonifácio escreveu um artigo intitulado “Perdoai-lhe, senhor, que não sabe o que diz“. O título é ótimo, mas infelizmente a ignorância, sobretudo a granítica, não só não é casual como é parte estrutural do que nos está a acontecer: estarmos nas mãos de gente que não sabe o que diz, mas sabe muito bem que quer – o poder sobre as vidas dos outros – como consegui-lo e sobretudo mantê-lo.

PS. Em 1961, os jardineiros da autarquia de Lisboa conceberam sem dificuldades de maior os 32 brasões do jardim de Belém. Em 2021, a CML cujo quadro de pessoal atingiu os astronómicos 13.068 postos de trabalho, alega que não tem pessoal qualificado para manter esses canteiros.

Título e Texto: Helena Matos, Observador, 28-2-2021

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