sábado, 20 de fevereiro de 2021

O novo macarthismo

Agora, querem até cancelar diplomas de quem serviu à administração Trump

Ana Paula Henkel

No início da década de 1950, alguns líderes norte-americanos repetiam incansavelmente ao público que todos deviam temer a influência comunista subversiva em sua vida. Os comunistas, eles diziam, poderiam estar à espreita em qualquer lugar, usando suas posições como professores universitários, artistas ou jornalistas em favor do programa mundial de dominação marxista. O movimento ficou conhecido como Red Scare. Atingiu seu ápice entre 1950 e 1954, quando o senador Joe McCarthy, de Wisconsin, um republicano, lançou uma série de investigações sobre a suposta atuação comunista dentro do Departamento de Estado, na Casa Branca, no Departamento de Tesouro e até no poderoso Exército dos Estados Unidos.

McCarthy foi eleito para o Senado em 1946. Ganhou destaque em 1950, depois de um inflamado discurso no Estado de Virgínia Ocidental em que afirmou que quase 60 comunistas haviam se infiltrado no Departamento de Estado. A busca subsequente de McCarthy por comunistas na Agência Central de Inteligência (CIA) e em outras áreas do governo o tornou uma figura incrivelmente polarizadora e tóxica. Após a reeleição de McCarthy, em 1952, ele obteve a presidência da Comissão de Operações Governamentais do Senado e da Subcomissão Permanente de Investigações. Nos dois anos seguintes, esteve constantemente sob os holofotes, investigando vários departamentos e interrogando inúmeras testemunhas sobre suas supostas afiliações comunistas. Embora ele tenha falhado em apresentar um único caso plausível, suas acusações habilmente apresentadas causaram a expulsão de alguns funcionários públicos e destruíram a reputação de muitas pessoas, que experimentaram a condenação popular.

Desde então, o termo macarthismo (McCarthyism) é usado para apontar a prática de difamação de caráter por meio de alegações indiscriminadas amplamente divulgadas, sobretudo com base em acusações infundadas, com retórica inflamada, exageradas e extremamente prejudiciais àqueles que são alvo da perseguição.

A eleição de Donald Trump, em 2016, mexeu profunda e consideravelmente no tabuleiro político norte-americano, assim como nas peças da geopolítica global. Depois de oito anos do governo de Barack Obama — que, discretamente, alimentou a divisão racial e política no país —, durante os quatro anos da administração Trump vimos a polarização política atingir níveis históricos entre democratas e republicanos. A eleição presidencial de 2020, cheia de perguntas ainda sem respostas, e a troca de cadeiras na Casa Branca não ajudaram a apaziguar os ânimos. E, para piorar, o discurso vazio de Joe Biden sobre “unir o país” não condiz com a realidade e com a atual carnificina virtual perpetrada por seus seguidores. Ao apagar das luzes republicanas em Washington, seguiu-se uma vil perseguição — ainda em curso — a todos os que trabalharam na administração Trump e em sua campanha de reeleição. Os novos soldados do cancelamento tentam achar até eleitores do “novo Hitler” para caçá-los, exibi-los, tirar seus empregos, redes sociais e até diplomas. A suposta escória da sociedade precisa ser exposta com as letras escarlates MAGA no peito — o acrônimo do slogan Make America Great Again. É o encontro de Robespierre com Joe McCarthy.

O remédio para a cultura do cancelamento seria a resistência de líderes adultos fortes

As guilhotinas virtuais não estão apenas espalhadas por redes sociais, encorajadas a atuar sem dó depois que o Twitter baniu para sempre a conta do então presidente Trump. A virulência do espírito do encontro da Revolução Francesa com o novo macarthismo alimenta 5 mil estudantes e professores da Harvard que exigem o cancelamento dos diplomas de Direito do senador republicano Ted Cruz e da ex-secretária de imprensa da Casa Branca Kayleigh McEnany. Único motivo: eles serviram à administração Trump. É evidente que, caso os diplomas venham de fato a ser cancelados, a encrenca acabaria nos tribunais. E a tendência da Justiça seria dar ganho de causa aos prejudicados. Mas o desgaste na imagem pública já está feito.

David Schoen [foto], um dos advogados que representaram Trump durante o recente julgamento de impeachment, disse que uma faculdade cancelou um curso de direitos civis que ele daria em breve: “O curso estava programado para o outono. Já tínhamos conversado e planejado. Escrevi para eles e disse: ‘Quero que saibam que vou representar Donald Trump no caso de impeachment. Não sei se isso impacta em sua decisão de ter meu curso no calendário’. Eles disseram que gostavam muito do meu material, mas que, infelizmente, isso deixaria ‘alguns alunos e professores desconfortáveis’, então teriam de me desligar do curso”.

O clima atual da cultura do cancelamento evoca, de fato, as digitais do macarthismo, mas ela chega a ser ainda mais assustadora e destrutiva. Enquanto o limite para a condenação na era McCarthy era a alegada condição de “simpatizante comunista”, o suficiente hoje é a mera negativa à adesão pública a novas bandeiras politicamente corretas, tais como o combate a figuras históricas tachadas de racistas, fascistas, misóginas ou homofóbicas.

Assim como agora, a vítima mais grave da década de 1960 foi a autoridade adulta. Nos Estados Unidos, Ronald Reagan sustentou um pilar de autoridade por um tempo, mas então veio Bill Clinton e, com uma estagiária no Salão Oval, restaurou o modelo adolescente. O melhor remédio para a cultura do cancelamento seria a resistência de líderes adultos fortes — reitores de universidades, editores de jornais, chefes de corporações, pais, tios, técnicos esportivos — capazes de enfrentar as crianças mimadas, barulhentas, chatas e sem limites do Twitter e do Vale do Silício. Mas é improvável que esse “milagre” aconteça. A turba do cancelamento, assim como as hienas, caça em matilhas. E, atualmente, os que têm autoridade são covardes e não querem dar chance alguma à guilhotina virtual dos mini-Robespierres.

Com o tempo, o macarthismo se extinguiu e seus personagens foram devorados pelo próprio contexto surreal. O senador McCarthy, após ser censurado por seus colegas em 1954 e afundar no alcoolismo, morreu pouco tempo depois. Essa nova cultura do cancelamento, travestida de boas intenções com sinalizações de virtudes, será mais difícil de matar do que o macarthismo. O senador McCarthy era um monstro de filme B. A turma do cancelamento é um apocalipse zumbi.

Título e Texto: Ana Paula Henkel, revista Oeste, nº 48, 19-2-2021 

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