Agora, querem até cancelar diplomas de quem
serviu à administração Trump
Ana Paula Henkel
No início da década de 1950,
alguns líderes norte-americanos repetiam incansavelmente ao público que todos
deviam temer a influência comunista subversiva em sua vida. Os comunistas, eles
diziam, poderiam estar à espreita em qualquer lugar, usando suas posições como
professores universitários, artistas ou jornalistas em favor do programa mundial
de dominação marxista. O movimento ficou conhecido como Red Scare.
Atingiu seu ápice entre 1950 e 1954, quando o senador Joe McCarthy, de
Wisconsin, um republicano, lançou uma série de investigações sobre a suposta
atuação comunista dentro do Departamento de Estado, na Casa Branca, no
Departamento de Tesouro e até no poderoso Exército dos Estados Unidos.
McCarthy foi eleito para o
Senado em 1946. Ganhou destaque em 1950, depois de um inflamado discurso no
Estado de Virgínia Ocidental em que afirmou que quase 60 comunistas haviam se
infiltrado no Departamento de Estado. A busca subsequente de McCarthy por
comunistas na Agência Central de Inteligência (CIA) e em outras áreas do
governo o tornou uma figura incrivelmente polarizadora e tóxica. Após a
reeleição de McCarthy, em 1952, ele obteve a presidência da Comissão de
Operações Governamentais do Senado e da Subcomissão Permanente de
Investigações. Nos dois anos seguintes, esteve constantemente sob os holofotes,
investigando vários departamentos e interrogando inúmeras testemunhas sobre
suas supostas afiliações comunistas. Embora ele tenha falhado em apresentar um
único caso plausível, suas acusações habilmente apresentadas causaram a
expulsão de alguns funcionários públicos e destruíram a reputação de muitas pessoas,
que experimentaram a condenação popular.
Desde então, o termo macarthismo (McCarthyism)
é usado para apontar a prática de difamação de caráter por meio de alegações
indiscriminadas amplamente divulgadas, sobretudo com base em acusações
infundadas, com retórica inflamada, exageradas e extremamente prejudiciais
àqueles que são alvo da perseguição.
A eleição de Donald Trump, em
2016, mexeu profunda e consideravelmente no tabuleiro político norte-americano,
assim como nas peças da geopolítica global. Depois de oito anos do governo de
Barack Obama — que, discretamente, alimentou a divisão racial e política no
país —, durante os quatro anos da administração Trump vimos a polarização
política atingir níveis históricos entre democratas e republicanos. A eleição
presidencial de 2020, cheia de perguntas ainda sem respostas, e a troca de
cadeiras na Casa Branca não ajudaram a apaziguar os ânimos. E, para piorar, o
discurso vazio de Joe Biden sobre “unir o país” não condiz com a realidade e
com a atual carnificina virtual perpetrada por seus seguidores. Ao apagar das luzes
republicanas em Washington, seguiu-se uma vil perseguição — ainda em curso — a
todos os que trabalharam na administração Trump e em sua campanha de reeleição.
Os novos soldados do cancelamento tentam achar até eleitores do “novo Hitler”
para caçá-los, exibi-los, tirar seus empregos, redes sociais e até diplomas. A
suposta escória da sociedade precisa ser exposta com as letras escarlates MAGA
no peito — o acrônimo do slogan Make America Great Again. É o
encontro de Robespierre com Joe McCarthy.
O remédio para a cultura do cancelamento seria a resistência de líderes
adultos fortes
As guilhotinas virtuais não
estão apenas espalhadas por redes sociais, encorajadas a atuar sem dó depois
que o Twitter baniu para sempre a conta do então presidente Trump. A virulência
do espírito do encontro da Revolução Francesa com o novo macarthismo alimenta 5
mil estudantes e professores da Harvard que exigem o cancelamento dos diplomas
de Direito do senador republicano Ted Cruz e da ex-secretária de imprensa da
Casa Branca Kayleigh McEnany. Único motivo: eles serviram à administração
Trump. É evidente que, caso os diplomas venham de fato a ser cancelados, a
encrenca acabaria nos tribunais. E a tendência da Justiça seria dar ganho de
causa aos prejudicados. Mas o desgaste na imagem pública já está feito.
David Schoen [foto], um dos advogados que representaram Trump durante o recente julgamento de impeachment, disse que uma faculdade cancelou um curso de direitos civis que ele daria em breve: “O curso estava programado para o outono. Já tínhamos conversado e planejado. Escrevi para eles e disse: ‘Quero que saibam que vou representar Donald Trump no caso de impeachment. Não sei se isso impacta em sua decisão de ter meu curso no calendário’. Eles disseram que gostavam muito do meu material, mas que, infelizmente, isso deixaria ‘alguns alunos e professores desconfortáveis’, então teriam de me desligar do curso”.
O clima atual da cultura do
cancelamento evoca, de fato, as digitais do macarthismo, mas ela chega a ser
ainda mais assustadora e destrutiva. Enquanto o limite para a condenação na era
McCarthy era a alegada condição de “simpatizante comunista”, o suficiente hoje
é a mera negativa à adesão pública a novas bandeiras politicamente corretas,
tais como o combate a figuras históricas tachadas de racistas, fascistas,
misóginas ou homofóbicas.
Assim como agora, a vítima
mais grave da década de 1960 foi a autoridade adulta. Nos Estados Unidos,
Ronald Reagan sustentou um pilar de autoridade por um tempo, mas então veio
Bill Clinton e, com uma estagiária no Salão Oval, restaurou o modelo
adolescente. O melhor remédio para a cultura do cancelamento seria a
resistência de líderes adultos fortes — reitores de universidades, editores de
jornais, chefes de corporações, pais, tios, técnicos esportivos — capazes de
enfrentar as crianças mimadas, barulhentas, chatas e sem limites do Twitter e
do Vale do Silício. Mas é improvável que esse “milagre” aconteça. A turba do
cancelamento, assim como as hienas, caça em matilhas. E, atualmente, os que têm
autoridade são covardes e não querem dar chance alguma à guilhotina virtual dos
mini-Robespierres.
Com o tempo, o macarthismo se
extinguiu e seus personagens foram devorados pelo próprio contexto surreal. O
senador McCarthy, após ser censurado por seus colegas em 1954 e afundar no
alcoolismo, morreu pouco tempo depois. Essa nova cultura do cancelamento,
travestida de boas intenções com sinalizações de virtudes, será mais difícil de
matar do que o macarthismo. O senador McCarthy era um monstro de filme B. A turma
do cancelamento é um apocalipse zumbi.
Título e Texto: Ana Paula Henkel, revista Oeste, nº 48, 19-2-2021
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