O caso dos Brasões do Império mostra como a guerra do esquerdismo à americana para eliminar símbolos históricos tomou em Portugal a forma manhosa da negligência e da dissimulação
Rui Ramos
Houve um tempo em que as
esquerdas podiam ser tudo, menos americanas. Em Portugal, por exemplo, eram
francesas, russas ou até mesmo chinesas: isto quer dizer que a maioria copiava
as modas de Paris, uma parte (os comunistas) recebia ordens da União Soviética,
e, a partir de certa altura, outra parte julgava-se inspirada pela China de Mao
(de facto, o seu maoísmo não passava de uma contrafação parisiense). Nos EUA, é
que nada havia que se aproveitasse. A esquerda americana era até religiosa e anticomunista,
para grande perplexidade dos nossos progressistas. Os EUA representavam apenas
o mal em todos os seus aspectos: a sociedade de consumo, a alienação dos
trabalhadores, o imperialismo económico e militar.
Tudo isto mudou nos últimos
trinta anos. O francês deixou de ser a língua do intelectual de esquerda, a
União Soviética desapareceu, e a China é hoje mais uma face da “globalização neoliberal”.
Sem alternativa, a esquerda tornou-se americana. E ao tornar-se americana,
tornou-se também universitária, porque nos EUA é nas universidades que o
esquerdismo é fabricado. Como antigamente, trata-se ainda de derrubar o
“sistema”, isto é, o capitalismo e a democracia liberal, concebidos como
fachadas de um poder opressor. Só que esse poder já não é definido pela classe
social, mas pela raça e pelo sexo. E por isso, para o destruir, importa menos
nacionalizar terras e fábricas, do que alterar memórias, destruir símbolos e
refazer identidades, de modo a subverter a suposta hierarquia racial e sexual
que é mantida por essas memórias, símbolos e identidades. Por vezes, tudo isto
surge à face da consciência pública como uma excentricidade – a “loucura do
politicamente correto”. Mas engana-se quem toma este movimento de modo tão
leve. Por detrás dessa suposta “loucura”, existe uma infraestrutura repressiva,
a “cancel culture”, organizada para intimidar, estigmatizar, excluir e
silenciar — nas universidades, na imprensa, no mundo editorial, nas redes
sociais e em muitos locais de trabalho.
Em vez da velha “luta de classes”, temos assim as esquerdas ocupadas agora na “guerra cultural”. Um dos seus aspectos é a criminalização do passado: em 1800 ou em 1500, os que então viviam não pensavam como um professor de esquerda norte-americano nem tinham os seus hábitos? A essa diferença, chamava-se antigamente “história”. Agora, chama-se “crime”. Sim, segundo estes combatentes da guerra cultural, é só por criminalidade que o passado não é igual ao presente. E por isso, tudo o que diz respeito a esse passado deve ser denunciado e demolido implacavelmente, até limparmos o nosso virtuoso presente das manchas dos nossos perversos antecessores. Os seus livros devem deixar de ser lidos, a sua música deve deixar de ser tocada, as suas imagens devem deixar de ser vistas, os monumentos que os lembram devem ser destruídos etc. Só assim poderá uma nova humanidade, pura e justa, igualitária e sem preconceitos, emergir da depravação do passado.
Da “luta de classes” dizia-se
que nunca ia de férias. Da “guerra cultural” ficámos a saber, o ano passado,
que não faz confinamento. Foi assim que, por entre as estatísticas da pandemia,
vimos a esquerda radical americana muito ocupada a derrubar estátuas, a
vandalizar monumentos e a apagar nomes. Geralmente, associados à escravatura ou
à Confederação de 1861-1865. Como seria de esperar, as esquerdas de outros
países seguiram a moda. Em Inglaterra, também se apearam e acometeram
estátuas, incluindo a de Winston Churchill. O caso de Churchill dá ideia do que, se esta
iconoclastia tivesse carta branca, lhe poderia sobreviver: obviamente nada,
porque é sempre possível, para condenar um homem nascido há quase 150
anos, encontrar-lhe um ato ou uma opinião hoje heterodoxa, mesmo que tenha
sido esse o homem que liderou a resistência contra o nazismo.
Por cá, este esquerdismo de
importação americana começou pela estátua do Padre António Vieira, no Largo
Trindade Coelho, em Lisboa, o que fez muita gente reparar mais na sua
ignorância do que propriamente na sua ideologia. Mas é um erro subestimar esse
movimento. Nos anos 1980 e 1990, a história das antigas “descobertas e
conquistas” ainda foi ressuscitada oficialmente como uma história de contatos
entre povos, de “encontro com o outro”, de “intercâmbio de culturas”. Foi essa
a filosofia da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos e da
Exposição Internacional de Lisboa de 1998. Na última década, porém, a
americanização da universidade portuguesa arrastou a mesma geração que nos anos
90 se entusiasmava com o “intercâmbio de culturas” a reconceber o “império”
como uma espécie de Auschwitz intercontinental, onde só terá havido
escravização e genocídio. Não é de facto difícil fazer de todo o passado
português uma coisa desmesuradamente monstruosa: basta esquecer que, nesse mundo,
toda a gente — do rei cristão ao sultão muçulmano, ou do inca americano ao soba
africano — invadia, conquistava, convertia, capturava ou escravizava, sempre
que tinha oportunidade. Mas é assim que essa história começa a ser ensinada: os
portugueses do século XVI teriam sido nazis entre povos que, pelo contrário,
estariam já todos na fase de convívio pacífico de uma conferência da Unesco. É
o que parece acreditar a coordenadora do Bloco de Esquerda, por exemplo.
Foi por isso legítimo
suspeitar que houvesse uma vontade de depuração na escolha da Câmara Municipal
de Lisboa, controlada por uma maioria de esquerda, de eliminar os arranjos
vegetais que nos relvados da Praça do Império, desde 1961, representam as
cruzes de Cristo e de Avis e os brasões de armas dos distritos de Portugal e
das oito províncias do então Ultramar português. Em 2016, na Assembleia
Municipal de Lisboa, os promotores de uma petição contra o saneamento dos
brasões, da associação Nova Portugalidade, puderam constatar os “propósitos de cancel culture”
e “a quase obsessão pela ideologia por parte de alguns deputados municipais”.
O mesmo detectou justamente o historiador João Pedro Marques no comentário do então vice-presidente socialista da câmara de que os brasões “estão datados e podem ser ofensivos”. Há dias, António Barreto
perguntou se planeavam, por um princípio de coerência, demolir também o Mosteiro dos Jerónimos.
Seria talvez a grande
oportunidade para os esquerdistas fazerem ouvir os seus tambores e gritos de
guerra, e demonstrarem que sim, os brasões da Praça do Império têm de ser
removidos, tal como as cruzes gamadas na Alemanha do pós-guerra. Mas em
Portugal, a esquerda radical está, desde 2015, submetida ao poder socialista.
Adaptando o famoso dito do general de Gaulle: só faz o que o PS lhe consente, e
consente tudo o que o PS lhe faz. Os radicais foram assim aparentemente
mandados calar-se, e os oligarcas socialistas trataram do assunto. Como? Da
maneira mais típica do poder socialista: é claro que não querem eliminar os
brasões. Quem diz isso, segundo o socialismo lisboeta, mente ou é ignorante. Por
quê? Porque os brasões, simplesmente, não existem. Sim, isso
mesmo: não existem. Não existiam no projeto original de Cottinelli Telmo, dos
anos 1940, e já também não existirão hoje, porque os jardineiros da câmara há
muito que deixaram de cuidar dos arranjos florais criados em 1961, e até dos
arbustos que os substituíram por volta de 1970. Logo, se os brasões não
existem, é óbvio que ninguém os vai remover. Mais: o verdadeiro objetivo da
municipalidade de esquerda antifascista é restabelecer a configuração da praça
respeitando a vontade do Dr. Salazar e dos seus colaboradores da década de 40.
De que “guerra cultural” se queixam?
Nada disto é surpreendente,
nem a desonestidade, nem o descaramento. Os oligarcas socialistas sabem que têm
de servir vários senhores para se manterem num país onde, ao contrário do que
se acredita em alguns estúdios e redacções de Lisboa, o esquerdismo não é a
religião nacional. Convém-lhes, por um lado, provar aos radicais, de cujos
votos dependem no parlamento e na Câmara Municipal de Lisboa, que podem confiar
nos socialistas para algumas manobras de guerra cultural; mas convém-lhes
também sugerir a quem estima a história nacional que, com os socialistas no
poder, a guerra cultural será sempre uma guerra à Solnado, sem grandes
excessos. Vimos a mesma ambiguidade no combate declarado contra os hospitais
privados durante esta pandemia: primeiro, o poder socialista alinhou com a
esquerda neocomunista no boicote e difamação dos “privados”; depois,
subitamente, houve ordem para recuar, e os “privados” foram readmitidos ao
convívio humano e até louvados. A mesma história se passou com a proibição do
ensino nos colégios privados, que primeiro existiu, e depois nunca existiu. O
poder socialista elevou a duplicidade a uma arte.
Tudo isto faz da “guerra
cultural” em Portugal uma coisa diferente do que se passa na América. É como se
aqueles que derrubam estátuas de generais confederados nos EUA argumentassem
que estão apenas a fazer um trabalho de urbanismo, de restituição dos espaços
originais. Eis a confusão político-ideológica de que vive a hegemonia
socialista. Está a par da confusão orçamental lamentada esta semana pelo
Conselho das Finanças Públicas. Mas não nos deixemos enganar. A guerra cultural
existe, tal como o endividamento público ou a hostilidade aos “privados” na
saúde e na educação. Mas em vez de uma “guerra”, com frentes claras, temos
outra coisa: uma degradação manhosa das referências históricas da comunidade,
através da negligência e da dissimulação. E não, neste caso dos “brasões” não
está em causa, como também foi dito, fixar a cidade numa determinada fase do
seu passado, reduzindo-a a um museu. Está em causa outra coisa: a história que
fez um país. Essa história importa. Nunca houve democracias onde faltou às
populações a coesão de um destino histórico comum, porque essa solidariedade é
necessariamente a primeira condição de um regime de igualdade e de liberdade.
Ora, essa solidariedade é inseparável de uma educação, de que os monumentos são
uma das referências. Também nunca houve verdadeiro internacionalismo onde não
há traços do cruzamento da história do país com a história de outros países,
tenha esse cruzamento tido a forma de conflito ou de aliança, de império ou de
federação. Degradar a memória desse destino comum e desse entrecruzamento com
outros povos é mais uma maneira de empobrecer um país já abalado pelo mais
longo período de estagnação e de divergência económica em relação ao resto do
mundo desde a II Guerra Mundial.
Título e Texto: Rui Ramos,
Observador,
12-2-2021
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