Sinto-me mais unido a uma zebra ou a um busca-pólos do que aos meus compatriotas que se deleitam na arte da bufaria. É mau ser nazi, comunista, ladrão, violador ou fã dos Trovante. É pior ser bufo
Aconteceu há dias um daqueles
escândalos que duram duas horas e se esquecem em dois minutos. Um sujeito que
acabara de assinar um artigo a condenar a participação em festas e
ajuntamentos, particularmente na passagem de ano, foi apanhado a participar numa
festa ou ajuntamento, precisamente na passagem de ano. Ao que li algures, o
sujeito é “humorista” e “ativista” LGBT, um manifesto pleonasmo. Mas a
identidade dele não me interessa. Interessa a rapidez com que o denunciante se
viu denunciado, quase uma inevitabilidade para quem se dedica a tão reles
exercício.
Uma das manias repugnantes
alimentadas pela Covid é a conversa de que sairemos “mais unidos” desta
provação. Primeiro, não há garantia de que alguma vez possamos sair da opressão
e da arbitrariedade que o governo aproveitou para impor a pretexto do vírus.
Depois, há garantia de que, ainda que passe, toda a história deixará um rasto
de desconfiança. E de nojo. E, se tivermos sorte, de vergonha. Por mim,
sinto-me mais unido a uma zebra ou a um busca-pólos do que aos meus
compatriotas que se deleitam na velha arte da bufaria. É mau ser nazi,
comunista, ladrão, violador ou fã dos Trovante. É pior ser bufo.
Infelizmente, a Covid mostra-nos que há bufos em toda a parte. E em toda a parte há medo dos bufos. É o senhor do café que não serve café com pavor de que alguém vá “abrir a boca”. É a senhora da loja que vende a tremer um par de peúgas “por causa das queixas”. É o casal que, à cautela, não recebe os amigos em casa nem é recebido por eles. É o dono do restaurante que é multado por servir três moços numa sala vazia. É o homem que passeia sozinho na praia deserta e num ápice se vê rodeado por uma brigada policial. E são todos os que delatam os desgraçados acima. E todos os que, quando não conseguem delatar, seguem para as “caixas” de comentários a reclamar punições exemplares – e até sangue – dos bandalhos recalcitrantes que não “cumprem” a “lei”.
A “lei”. Enquanto secam a
espuma no canto da boca, os bufos fingem que a “lei” em questão possui origem
divina. Não possui. A “lei” a que se referem é apenas o rol de delírios
produzidos a cada manhã pela peculiar cabeça do dr. Costa, embalado pelo
indivíduo que ocupa Belém e “legitimado” pelos matraquilhos com que reúne no
Infarmed. Não há aqui vestígio de racionalidade (a não ser, por exemplo, que a
abolição da venda de água em “take away” ou a manutenção dos transportes
públicos sejam atos racionais): há prepotência, e é a prepotência que os bufos
se esforçam por ajudar a aplicar.
É, aliás, um esforço a que se
dedicam com evidente prazer. O bufo não é movido por dinheiro, já que, embora
as “autoridades”, da DGS à PSP, instiguem a denúncia, que eu saiba ainda não a
remuneram. O bufo não é movido por receio do vírus, já que óbvia e
coerentemente cumpre a lei e a infalibilidade desta retira-lhe qualquer risco
de se expor à doença. O bufo não é movido pela devoção à saúde pública, já que
não lamenta o brutal excesso de mortos à conta de doenças um pouquinho mais
graves que a Covid. O bufo não é movido pelo amor ao bem-comum, já que não se
oferece para partilhar o salário, que julga garantido, com aqueles que empurra
para a falência certa. O bufo denuncia pelo simples gozo de acusar o próximo, a
oportunidade dos pelintras para exercer poder e achincalhar. O bufo e o regime
em que o bufo prospera têm objetivos comuns.
Não vale a pena decidir se as
ditaduras propiciam o surgimento de bufos ou se a abundância de cidadãos
desprovidos de carácter é indispensável ao advento de tiranetes. O provável é
ambas as chagas se estimularem mutuamente. O facto é que o dr. Costa não
existiria sem uma vasta quantidade de pessoas que, após a gestão criminosa da
epidemia, a gestão ruinosa da economia e a gestão mentirosa da política,
continuam dispostas a servi-lo, através do voto e da delação. E essas pessoas
não espraiariam os seus baixíssimos instintos sem um “ambiente” propenso à
velhacaria. As “autoridades” e os bufos estão bem uns para os outros.
Mal estamos nós. É claro que,
um belo dia, os denunciantes acabarão denunciados e, idealmente, enxovalhados e
pobres e doentes como aqueles que perseguiram. É, porém, um consolo fraquito.
Entretanto, a tragédia de que foram cúmplices terá causado uma miséria sem
regresso nem remédio. Não falo só da miséria sanitária ou material: mesmo que,
por milagre, as coisas voltem ao velho “normal”, sobrará sempre um desconforto,
uma repulsa por partilharmos o país e o tempo com criaturas profundamente
deploráveis. Afinal, amanhã vamos cruzar-nos na rua com os bufos de hoje. A
menos que os bufos sigam o próprio conselho e fiquem em casa até à eternidade.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
6-2-2021
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