sábado, 2 de outubro de 2021

A insolência dos farsantes

Os comandantes da CPI tentam provar que quem morreu de covid foi assassinado por um genocida

Augusto Nunes

Montagem com Imagens Shutterstock

A trinca faria bonito num filme sobre a máfia. Omar Aziz seria o chefão da famiglia, recomendam a expressão arrogante, a arroba que sobra na silhueta e os ternos mal-ajambrados que procuram escondê-la. Os óculos de primeiro da classe sugerem que Renan Calheiros iria bem como advogado e conselheiro do bando — mesmo que pareça nascido para interpretar um cangaceiro fashion, avisam os cabelos alisados à força e o implante que tenta inutilmente socorrer a cobertura capilar em retirada. Randolfe Rodrigues brilharia no papel do filho do chefão sem chances de tornar-se herdeiro: ordens emitidas com voz de castrato, ainda mais se reforçadas por chiliques e faniquitos, não são cumpridas sequer por sabujos capazes de passar a vida ajoelhados no altar do líder ladrão.

Para aflição do Brasil sensato, os três canastrões — todos especializados em cenas de cafajestagem explícita — são senadores do País do Carnaval, estão satisfeitos com a vida mansa no Congresso e, no momento, atuam em tempo integral na Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid. Presidente, Omar Aziz tem a cumplicidade majoritária de cinco dos 11 pais-da-pátria titulares. Relator, Renan Calheiros abriu os trabalhos com as conclusões já concluídas — e o parecer todo pronto, provavelmente encadernado. Vice-presidente, Randolfe Rodrigues é um esforçado ajudante de ordens dos generais de cordão carnavalesco. Em perfeita sintonia, o trio luta para provar que, diferentemente do que ocorreu no restante do planeta, não foi a pandemia de coronavírus que encurtou quase 600 mil vidas. Foram quatro surtos da variante JB.

Nessa linha de raciocínio, o primeiro surto obrigou cada nativo a engolir diariamente um barril de cloroquina. O segundo proibiu o uso de máscaras. O terceiro transformou a compra de vacinas em ameaça à soberania nacional. O quarto botou na cabeça dos nativos que é melhor morrer numa aglomeração provocada por Bolsonaro do que passar dos 90 anos sem beijos no rosto, abraços e apertos de mão. O Alto Comando da CPI tem reiterado nas últimas semanas que a luta continua. Aziz, Renan e Randolfe seguem à caça da prova definitiva de que só no Brasil o vírus chinês pôde dispensar-se de matar os que morreram. O presidente genocida fez o serviço por ele.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Três farsantes insolentes às voltas com uma missão impossível — eis aí uma fórmula que decididamente não pode funcionar. Adicione-se a aproximação das eleições, a afobação dos candidatos a candidato da terceira via, a angústia dos que pretendem mais um mandato, a transmissão ao vivo das sessões por emissoras de TV e redes sociais, a polarização política, a nenhuma simpatia dos oradores pela língua portuguesa — e pronto: só podia dar no que deu. Pelo que fez e deixou de fazer, a CPI da Covid já assegurou um asterisco no capítulo brasileiro da história universal da infâmia. Nele será lembrado, por exemplo, que os filhotes degenerados do Inspetor Clouseau excluíram das investigações a roubalheira bilionária promovida por governos estaduais. Também se registrará que foi criada uma versão parlamentar para o velho “Você sabe com quem está falando?”, interrogação que escancara a arrogância de quem se julga condenado à perpétua impunidade. “Me respeite, sou um senador da República!”, exclamam agora os integrantes da CPI quando algum depoente diz ou faz qualquer coisa que a eles desagrade.

Foi o que fez Simone Tebet, do PMDB de Mato Grosso do Sul, ao ser qualificada de “desequilibrada” por Wagner Rosário, ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, a quem acabara de chamar de “menino mimado”. É o que vive fazendo Humberto Costa, do PT pernambucano, ministro da Saúde do governo Lula até aparecer abraçado às criaturas do pântano drenado pela Operação Sanguessuga. Anos mais tarde, quando Costa entrou na mira da Lava Jato, essa anotação na capivara inspiraria o funcionário do Departamento de Propinas da Odebrecht que o estigmatizou com o codinome agora famoso: Drácula. O timbre da voz está meio decibel abaixo dos agudos alcançados por Randolfe. Quando gritam em dueto, produzem um som mais insuportável que os conselhos oferecidos aos depoentes por Omar Aziz. Um deles foi ouvido pelo empresário Otavio Fakhoury na sessão deste 30 de setembro: “Tire o ódio do seu coração, rapaz. Você é um negacionista que matou milhares de pessoas. O amor vai fazer você sentir-se muito melhor”.

Um senador é, essencialmente, um funcionário público — e muito bem pago

Nem sempre. O amor ao dinheiro anexou o ex-governador do Amazonas à fila de investigados no Supremo Tribunal Federal, tripulando um desvio de verbas destinadas à saúde que somaram R$ 260 milhões. Envolvidos no mesmo caso de polícia, foram presos a mulher e dois irmãos do agora conselheiro. Também contém riscos a paixão por menores de idade. Em julho, Artur Virgílio Neto afirmou que Aziz só escapou de uma CPI da Pedofilia instaurada pela Assembleia Legislativa graças à interferência do ex-senador e ex-prefeito de Manaus. “A pedido de sua mãe, respeitável e querida senhora, livrei-o de uma dura condenação penal e da desmoralização completa”, contou Virgílio. Pelo que diz na CPI, o presidente é pai extremoso, marido amantíssimo e filho exemplar. A folha corrida berra o contrário.

Na melhor das hipóteses, Aziz está alguns metros menos distante que Renan Calheiros dessa adjetivação superlativa. As relações com a filha que teve com uma amante impedem o relator de frequentar clubes de pais extremosos ou associações de maridos amantíssimos. Tampouco pode considerar-se exemplar um filho que tira o sono da mãe com encrencas empilhadas no STF. Dez inquéritos em tramitação atestam que Renan ainda é o recordista na modalidade bandidagem com direito a foro privilegiado. Outros três correm em sigilo ou sob segredo de Justiça. A marca seria ainda mais impressionante se o reincidente compulsivo não tivesse conseguido arquivar dez inquéritos por falta de provas, por decurso de prazo ou por amizade incestuosa entre réu e juiz. Mas também Renan, quando contestado, recita o mantra: “Me respeite, sou senador da República!”. Se lhe parece conveniente, troca “senador” por “relator”.

“E daí?”, poderia retrucar a vítima do comentário debochado, da molecagem humilhante, da grosseria odiosa ou de outras canalhices verbais. Um senador é, essencialmente, um funcionário público — e muito bem pago. O ocupante do cargo tem direito a R$ 165.000 por mês. Mas só é tributado o salário, hoje próximo de R$ 34.000. “Você é que me deve respeito: sou um dos pagadores de impostos que bancam o dinheirão que você recebe”, precisa ouvir o prepotente que cobra submissão de quem financia o vidaço que leva. Assim mesmo: você, não “Vossa Excelência”. Agraciar anões morais com tratamentos cerimoniosos é como dar bom-dia a cavalo. Ou enxergar uma dupla de estadistas no vigarista engaiolado por ladroagem e na cavalgadura incapaz de pronunciar de improviso uma única frase com começo, meio e fim.

Título e Texto: Augusto Nunes, revista OESTE, nº 80, 1-10-2021

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