Tomara que desta vez os cretinos não voltem a vencer; eles já estiveram no poder outras vezes no Brasil
Deonísio da Silva
Cerca de 12 milhões de árabes
vivem no Brasil, a maioria deles no Sudeste, no Nordeste e no Sul, e seus
ancestrais vieram de países como o Líbano e a Síria, e todos eles, sem muita
atenção às respectivas etnias, são identificados como árabes. Já é algum
progresso na designação, pois outrora eram todos turcos.
Um deles, porém, não era
árabe, era brasileiro, melhor dizendo paulista de Queluz, mas desde os dez anos
já vivia no Rio e estudava no Colégio Pedro II. Ali era professor o filólogo e
escritor José Júlio da Silva Ramos, um dos fundadores da Academia Brasileira de
Letras e do Botafogo, pai de Flávio Ramos, goleiro e goleador do clube.
O professor Silva Ramos era
exigente: todos os alunos deveriam escrever uma redação por semana e quem não a
fizesse tirava zero. E de castigo era proibido ir para casa nos fins de semana:
tinha que ficar no colégio, que a esse tempo era um internato.
Um aluno, porém, era o
pronto-socorro dos colegas que não sabiam ou tinham preguiça de escrever a
obrigatória redação de português. Ele a escrevia para os relapsos e com o
dinheiro recebido comprava o chocolate que muito apreciava.
Quando o autor das redações
cresceu e tornou-se professor de matemática e escritor, recebeu do presidente
Getúlio Vargas o direito de usar um documento de identidade com seu pseudônimo.
O primeiro nome social foi, pois, literário, e não se deu a nenhuma sexualidade
tida por ilegítima ou oculta.
O dono do pseudônimo tornou-se
muito conhecido porque a esse tempo o Brasil tinha proporcionalmente mais
leitores do que hoje. Quando o homem cuja identidade daqui a pouco se dará
estava sendo alfabetizado, o editor de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o
Conde de Afonso Celso, título que recebeu do papa Pio X, vendeu 300 mil
exemplares do livro “Por que me ufano de meu país”. A população brasileira era
de menos de 20 milhões e hoje é dez vezes maior. Era como se hoje um livro
vendesse três milhões de exemplares.
Vamos logo ao nome do menino, do rapaz e do cidadão cujas histórias muitos de nossos leitores certamente conhecem, especialmente o livro delicioso que é O homem que calculava, de Malba Tahan. O pseudônimo foi composto assim: Malba é o nome de uma cidade, e Tahan quer dizer moleiro em árabe. Não era ainda o agronegócio dando as caras, mas, sim, um ofício indispensável em localidades de todo o mundo: moer o trigo para que padeiros fizessem o pão nosso de cada dia. O professor e escritor inspirou-se também no nome de uma de suas alunas: Maria Zachsuk Tahan.
Uma das melhores histórias de O homem que calculava é a do capítulo III. Como dividir 35 camelos entre três herdeiros? Ali damos de cara com o sábio Beremiz, que encontra três árabes furiosos, praguejando uns contra os outros, mesmo sendo irmãos. Tudo porque o pai lhes deixou os camelos por herança determinando assim a divisão: a metade para o mais velho, um terço para o filho do meio, um nono para o caçula. Não indiquei as frações em números porque no Brasil atual quem escreve já toma o cuidado de não ser ou parecer pernóstico.
Ora, a metade de 35 é 17,5; um terço é 11,6; um nono é 3,8. Nenhum dos irmãos
aceita a divisão: “não pode ser”, “isto é um roubo”, “não aceito”.
Beremiz acrescenta o camelo do
amigo com quem viaja para facilitar a divisão. Com 36, a divisão é exata. O
primeiro filho fica com 18 camelos; o segundo, com 12; o terceiro, com 4. Os
três ficam satisfeitos porque a partilha foi arredondada para cima, favorecendo
a cada um deles. Beremiz, ao despedir-se, conclui: “Dos 36 camelos sobram,
portanto dois. Um pertence ao bagdali, meu amigo e companheiro, outro toca por
direito a mim, por ter resolvido, a contento de todos, o complicado problema da
herança”.
Malba Tahan apresentava-se ou
era apresentado assim: “Ali Yezzid Izz-Edin Ibn-Salin Malba Tahan, descendente
de uma tradicional família muçulmana, nasceu no dia 6 de maio de 1885, numa
aldeia chamada Muzalit, próxima à antiga cidade de Meca. Fez seus primeiros
estudos no Cairo e mais tarde mudou-se para Constantinopla. Seus primeiros
trabalhos literários foram publicados em turco. O emir Abd El-Azziz Ben Ibrahim
convidou Malba Tahan a desempenhar funções administrativas em El-Medina, o que
ele fez com rara inteligência e habilidade, tendo conseguido evitar graves
acidentes entre os peregrinos e as autoridades locais, pois procurava sempre
dispensar valiosa e desinteressada proteção aos estrangeiros ilustres que
visitavam os lugares sagrados do Islam. Faleceu em combate, em julho de 1921,
nas proximidades de El-Riad, quando lutava pela liberdade de uma pequena tribo
na Arábia Central.”
Mas tudo isso era mais uma
história inventada com raro brilho por quem tinha o dom de narrar e multiplicou
os talentos que recebera. Malba Tahan chamava-se Júlio César de Melo e Sousa e
morreu em 1974, aos 79 anos.
O homem que calculava é um dos
livros que mais vendem no Brasil atual. E ainda dizem que livro não vende. Um
dos homens ricos do mundo, Jef Bezos, vende livros. Se não vendesse, o Brasil
não teria tantas editoras, mesmo com a crise toda, não seria, apesar da crise,
um grande mercado editorial, ainda um dos maiores do mundo.
Mas, se Malba Tahan nos deu
pistas de como os números, com sua fama de exatidão, são enganadores, imagine o
quanto podem ser traiçoeiras as palavras. As trapaças vocabulares irromperam no
Brasil faz pouco tempo. Que dizer das tentativas de impor os pronomes neutros,
que ignaros inventaram para atacar o sistema da língua portuguesa que, como o
de qualquer outra língua, é estável e precisa ser estável? Você se sentiria bem
numa casa que balançasse toda hora, ameaçando desabar?
O filósofo e matemático inglês
Bertrand Russel ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Ele dá outros exemplos de
que não apenas os números enganam, mas também a lógica. Um barbeiro bem
barbeado diz que em sua cidade só barbeia os homens que não fazem a própria
barba. Então, quem corta a barba do barbeiro?
Muito antes dele, ainda no
século VII a.C., o cretense Epimênides disse que “os cretenses sempre mentem”. Se
ele disse a verdade, sua afirmação é falsa; se ele mentiu, a frase é
verdadeira. E o paradoxo não tem fim.
Os cretenses ficaram com fama
de cretinos por confusão de traduções. Mas esta é outra história. Concluamos
com o famoso humorista gaúcho Apparício Torelly, o Barão de Itararé, falecido
em 1971, aos 76 anos, que registrou em seu Almanhaque (agosto de
1955):
“Este mês, em dia que não
conseguimos confirmar, no ano 453 a.C. (antes de Cristo) verificou-se terrível
encontro entre os aguerridos exércitos da Beócia e de Creta. Segundo relatam as
crônicas, venceram os cretinos, que até agora se encontram no governo”.
Tomara que desta vez os
cretinos não voltem a vencer. Eles já estiveram no poder outras vezes no Brasil
e até os aliados recorreram a métodos heterodoxos para afastá-los. Senão o
desastre teria sido ainda maior.
Título e Texto: Deonísio da
Silva, revista
OESTE, 24-10-2021, 9h10
Deonísio da Silva é
professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo
Grupo Editorial Almedina. Os mais recentes são “De Onde Vêm as Palavras” e o
romance “Stefan Zweig Deve Morrer”
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