domingo, 24 de outubro de 2021

Cretinos e beócios estão em guerra

Tomara que desta vez os cretinos não voltem a vencer; eles já estiveram no poder outras vezes no Brasil

Deonísio da Silva

Cerca de 12 milhões de árabes vivem no Brasil, a maioria deles no Sudeste, no Nordeste e no Sul, e seus ancestrais vieram de países como o Líbano e a Síria, e todos eles, sem muita atenção às respectivas etnias, são identificados como árabes. Já é algum progresso na designação, pois outrora eram todos turcos.

Um deles, porém, não era árabe, era brasileiro, melhor dizendo paulista de Queluz, mas desde os dez anos já vivia no Rio e estudava no Colégio Pedro II. Ali era professor o filólogo e escritor José Júlio da Silva Ramos, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e do Botafogo, pai de Flávio Ramos, goleiro e goleador do clube.

O professor Silva Ramos era exigente: todos os alunos deveriam escrever uma redação por semana e quem não a fizesse tirava zero. E de castigo era proibido ir para casa nos fins de semana: tinha que ficar no colégio, que a esse tempo era um internato.

Um aluno, porém, era o pronto-socorro dos colegas que não sabiam ou tinham preguiça de escrever a obrigatória redação de português. Ele a escrevia para os relapsos e com o dinheiro recebido comprava o chocolate que muito apreciava.

Quando o autor das redações cresceu e tornou-se professor de matemática e escritor, recebeu do presidente Getúlio Vargas o direito de usar um documento de identidade com seu pseudônimo. O primeiro nome social foi, pois, literário, e não se deu a nenhuma sexualidade tida por ilegítima ou oculta.

O dono do pseudônimo tornou-se muito conhecido porque a esse tempo o Brasil tinha proporcionalmente mais leitores do que hoje. Quando o homem cuja identidade daqui a pouco se dará estava sendo alfabetizado, o editor de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Conde de Afonso Celso, título que recebeu do papa Pio X, vendeu 300 mil exemplares do livro “Por que me ufano de meu país”. A população brasileira era de menos de 20 milhões e hoje é dez vezes maior. Era como se hoje um livro vendesse três milhões de exemplares.

Vamos logo ao nome do menino, do rapaz e do cidadão cujas histórias muitos de nossos leitores certamente conhecem, especialmente o livro delicioso que é O homem que calculava, de Malba Tahan. O pseudônimo foi composto assim: Malba é o nome de uma cidade, e Tahan quer dizer moleiro em árabe. Não era ainda o agronegócio dando as caras, mas, sim, um ofício indispensável em localidades de todo o mundo: moer o trigo para que padeiros fizessem o pão nosso de cada dia. O professor e escritor inspirou-se também no nome de uma de suas alunas: Maria Zachsuk Tahan.


Uma das melhores histórias de O homem que calculava é a do capítulo III. Como dividir 35 camelos entre três herdeiros? Ali damos de cara com o sábio Beremiz, que encontra três árabes furiosos, praguejando uns contra os outros, mesmo sendo irmãos. Tudo porque o pai lhes deixou os camelos por herança determinando assim a divisão: a metade para o mais velho, um terço para o filho do meio, um nono para o caçula. Não indiquei as frações em números porque no Brasil atual quem escreve já toma o cuidado de não ser ou parecer pernóstico.

Ora, a metade de 35 é 17,5; um terço é 11,6; um nono é 3,8. Nenhum dos irmãos aceita a divisão: “não pode ser”, “isto é um roubo”, “não aceito”.

Beremiz acrescenta o camelo do amigo com quem viaja para facilitar a divisão. Com 36, a divisão é exata. O primeiro filho fica com 18 camelos; o segundo, com 12; o terceiro, com 4. Os três ficam satisfeitos porque a partilha foi arredondada para cima, favorecendo a cada um deles. Beremiz, ao despedir-se, conclui: “Dos 36 camelos sobram, portanto dois. Um pertence ao bagdali, meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido, a contento de todos, o complicado problema da herança”.

Malba Tahan apresentava-se ou era apresentado assim: “Ali Yezzid Izz-Edin Ibn-Salin Malba Tahan, descendente de uma tradicional família muçulmana, nasceu no dia 6 de maio de 1885, numa aldeia chamada Muzalit, próxima à antiga cidade de Meca. Fez seus primeiros estudos no Cairo e mais tarde mudou-se para Constantinopla. Seus primeiros trabalhos literários foram publicados em turco. O emir Abd El-Azziz Ben Ibrahim convidou Malba Tahan a desempenhar funções administrativas em El-Medina, o que ele fez com rara inteligência e habilidade, tendo conseguido evitar graves acidentes entre os peregrinos e as autoridades locais, pois procurava sempre dispensar valiosa e desinteressada proteção aos estrangeiros ilustres que visitavam os lugares sagrados do Islam. Faleceu em combate, em julho de 1921, nas proximidades de El-Riad, quando lutava pela liberdade de uma pequena tribo na Arábia Central.”

Mas tudo isso era mais uma história inventada com raro brilho por quem tinha o dom de narrar e multiplicou os talentos que recebera. Malba Tahan chamava-se Júlio César de Melo e Sousa e morreu em 1974, aos 79 anos.

O homem que calculava é um dos livros que mais vendem no Brasil atual. E ainda dizem que livro não vende. Um dos homens ricos do mundo, Jef Bezos, vende livros. Se não vendesse, o Brasil não teria tantas editoras, mesmo com a crise toda, não seria, apesar da crise, um grande mercado editorial, ainda um dos maiores do mundo.

Mas, se Malba Tahan nos deu pistas de como os números, com sua fama de exatidão, são enganadores, imagine o quanto podem ser traiçoeiras as palavras. As trapaças vocabulares irromperam no Brasil faz pouco tempo. Que dizer das tentativas de impor os pronomes neutros, que ignaros inventaram para atacar o sistema da língua portuguesa que, como o de qualquer outra língua, é estável e precisa ser estável? Você se sentiria bem numa casa que balançasse toda hora, ameaçando desabar?

O filósofo e matemático inglês Bertrand Russel ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Ele dá outros exemplos de que não apenas os números enganam, mas também a lógica. Um barbeiro bem barbeado diz que em sua cidade só barbeia os homens que não fazem a própria barba. Então, quem corta a barba do barbeiro?

Muito antes dele, ainda no século VII a.C., o cretense Epimênides disse que “os cretenses sempre mentem”. Se ele disse a verdade, sua afirmação é falsa; se ele mentiu, a frase é verdadeira. E o paradoxo não tem fim.

Os cretenses ficaram com fama de cretinos por confusão de traduções. Mas esta é outra história. Concluamos com o famoso humorista gaúcho Apparício Torelly, o Barão de Itararé, falecido em 1971, aos 76 anos, que registrou em seu Almanhaque (agosto de 1955):

“Este mês, em dia que não conseguimos confirmar, no ano 453 a.C. (antes de Cristo) verificou-se terrível encontro entre os aguerridos exércitos da Beócia e de Creta. Segundo relatam as crônicas, venceram os cretinos, que até agora se encontram no governo”.

Tomara que desta vez os cretinos não voltem a vencer. Eles já estiveram no poder outras vezes no Brasil e até os aliados recorreram a métodos heterodoxos para afastá-los. Senão o desastre teria sido ainda maior.

Título e Texto: Deonísio da Silva, revista OESTE, 24-10-2021, 9h10

Deonísio da Silva é professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Os mais recentes são “De Onde Vêm as Palavras” e o romance “Stefan Zweig Deve Morrer”

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