Carina Bratt
QUERIA PARAR o tempo de agora. Esquecer
o presente que se acentuava perverso, voltar a ser aquela menina, na flor dos
treze, correr, livre, leve e solta pela quinta dos seus pais. Tomar banho nua
em pelo, o corpinho exposto à cachoeira que descia de um distante desconhecido
e se desaguava numa espécie de entalhe de pirambeira enorme, fazendo um
estardalhaço medonhamente engalanador. O céu se alongava risonho e coberto por
nuvenzinhas ralas, e, lá adiante, onde as vistas não alcançavam, elas sumiam,
incógnitas, apoderadas por um quadrante que não era possível ver onde acabavam.
Sempre, por volta de nove horas, um avião aparecia riscando o firmamento, levando criaturas para lugares que, talvez, ela nunca pudesse colocar os pés. A aeronave deixava um rastro branco como se cortasse o azul em duas partes iguais. Os pássaros cantavam sob a batuta de um maestro divinal, imbuídos numa orquestração de partituras maviosas que faziam a paisagem se tornarem mais bela e aconchegante. Para as bandas da linha férrea, um carro de passageiros veloz, na sua pressa, levantava uma poeira amarela que não demorava muito se esvaia inteiramente no ar.
Na casa grande, imersa entre o fogão e
as panelas, a mãe e duas empregadas preparavam o almoço. Os funcionários da
fazenda, apressurados, praticamente corriam de um lado para outro, afoitos às
tarefas do dia a dia. Pareciam robôs incansáveis, alheios aos encantamentos do
airoso que pairava por todos os lados, como uma marca registrada da natureza
virginal. Uma sensação de paz invadia o coração da menina juntamente com uma
tranquilidade que não dava folga e insistia em não deixar que aquele paraíso
aprazível se perdesse com dissabores.
De repente, o trem que vinha do
interior quebrava a mudez. Durava um momentâneo tão pouco, a sua passagem, que
não se delongava muito, e por conta de minutos, se esvaía. Tudo voltava a
mergulhar numa solidão meio possessa, mas abençoada, que não se fazia pesada,
ao contrário, trazia uma esperança que abraçava forte e agarrava, no âmago da
alma, deixando a totalmente entregue a uma festa de digestão imorredoura. Nesta
hora, como se homiziada em sua inocência de criança mal desabrochada, a menina
divagava. Sonhava acordada, modulava o coração à linha meridiana de voar longe,
como um pássaro errante em busca de novas terras.
Mas as possibilidades se lhe apresentavam pequenas demais. Além de miúdas, impossíveis, até. A vida e o seu conjunto de hábitos, até então se faziam pacatos, vagos e informes. Carecia, de pronto, ter mais idade, se fazer maior na identidade, além da certidão de nascimento e da carteirinha da escola primária. Apesar de tudo isto, a menina não desistia do dia que seguiria o seu caminho solo. Por conta própria, a bel prazer das suas premências. Um dia, deixaria para sempre os aconchegos dos pais, e escreveria o seu destino longe das cercanias daquele reino aprazível e enorme, onde nascera, crescera e se tornara uma criatura divina.
Igualmente onde aprendera que o mundo,
a vida, os pensamentos e as ideias iam além e se transformariam em uma
realidade que só ela guardava a sete chaves dentro da sua imaginação. Nesta
busca pelo porvir, vieram os quinze, os dezoito, os vinte. A localidade lhe
dera o ginásio e o colegial completos e, então, finalmente, a hora da euforia.
Partir de mala e cuia para a cidade grande. Despargir os conhecimentos. Se ater
às belezas mil que se descortinavam pelas ruas e avenidas da grande São Paulo,
com as suas correrias e sufocos, atropelos e afobações.
A tudo ela via pela tela plana da
televisão de seu quarto, o que aumentava a vontade endoidecida de sentir, na
carne, na pele, de vivenciar os assombros e as estuporações além das porteiras
protetoras que guarneciam a sua vida interiorana e o inquieto, sobretudo o
ebulitivo e o efervescente do seu ‘eu’ oculto, que lhe inoculara, nas veias,
despautérios de ilimitada confiança e assanhamentos nos signos que podiam
predizer o seu futuro. Afeita a seguir em frente, belo dia anunciou aos pais o
seu afastamento em definitivo do lar materno. Choros e lágrimas, queixumes e lamentos,
não adiantaram.
A menina que queria parar o tempo,
esquecer o presente, estava decidida a largar o berço do Éden e partir em busca
de perspectivas ainda não experimentadas. Por assim, naquela noite de domingo
chuvosa, os pais a levaram à estação ferroviária e ali ficaram até que ela
embarcasse. O adeus final foi penoso, amargo, aflitivo e inesquecível. Mesmo
depois do litorânea ter sumido em meio à cortina de montanhas e cordilheiras,
pai e mãe, se prostraram chorosos, presos ao banco de madeira no vazio oco da
plataforma, os rostos entristecidos, as lágrimas abundando as faces, como se à
espera de um milagre que sabiam, de antemão, não aconteceria.
Inexorável e imparcial, o tempo seguiu
em frente. Conversas com a família, só pelo telefone ou em trocas de saudades e
a renovação de promessas, por vídeos, via aparelhos celulares. Nestas ocasiões,
o pai se debulhava em prantos sentidos, bem como a mãe, mesmo quadro de
torturas e desassossegos, nunca aceitou, de bom grado, a absurdez da única
filha ter optado por deixar a casa hospedeira, onde, de manhã a noite, o
querençoso nunca deixava de ser prazenteiro e melieiro. Anos à frente, a
menina, agora mulher, aos quarenta, resolveu regressar. Não vinha só.
Trazia, na bagagem o diploma de
engenheira agrônoma, uma filha recém-nascida nos braços e um marido advogado. A
cidade grande lhe fora boa, nada havia a reclamar. Contudo, a saudade dos pais,
agora mais envelhecidos, o aconchego do seu quarto, o lugar, as montanhas, a
cachoeira, a maviosidade do espaço sem o amontoamento do desordenado não saiam
da sua cabeça. A volta ao lar, para os pais da menina que queria parar o tempo,
se fez realidade, como se a moça-mulher tivesse sido arrebatada por um sopro
divino. E, de fato, foi. Para ela, o entusiasmo e a alegria contagiante dos
idosos, lhe deu a impressão que, embora desgastados pelos anos, o casal parecia
remoçado.
A menina que queria para o tempo de
agora, esquecer o presente que se acentuava perverso, voltou, de novo, embora
mais velha, a ser aquela menina, na flor dos treze, a correr, livre, leve e
solta pela quinta das suas raízes. Voltou a tomar banho nua em pelo, o corpinho
exposto à cachoeira que descia de um distante desconhecido e se desaguava numa
espécie de entalhe de pirambeira enorme, fazendo um estardalhaço medonhamente
engalanador. Com ela, os primeiros passos da filhinha, o marido... e o mais
importante: o cuidado redobrado dos autores de seus dias, agora avós,
engalanados pela netinha, pelo novo membro, o genro, e, obviamente, pelo
alcance do maior dos milagres. A volta triunfal da filha, a herdeira de tudo, a
sucessora que voltou e trouxe, de regresso, a alegria esfuziante que, por um
certo lapso de tempo, apenas ficou adormecida.
Título e Texto: Carina Bratt, do
Sítio Shangri-lá - divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. 31-10-2021
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