Como é possível alguém ser jornalista profissional e, ao mesmo tempo, ser capaz de passar seis meses de CPI sem dizer quem são — do ponto de vista penal — o seu relator e o seu presidente?
J. R. Guzzo
A “CPI da Covid” não está chegando realmente ao seu fim — está acabando, isto sim, com as marcas mais deprimentes de uma agonia. Essa aberração, uma das mais alucinantes que o Congresso Nacional produziu em toda a sua história, já estava destruída por uma metástase terminal antes mesmo de começar. Foi armada para falsificar fatos, condenar inimigos políticos e fraudar as próximas eleições presidenciais, com uma tentativa grosseira de derrubar o presidente da República e evitar a sua candidatura em 2022; nunca teve, assim, a mínima intenção de apurar honestamente nenhum erro no combate à covid.
Ao longo dos seis meses em que
esteve viva, foi um trem fantasma que levou o país a patamares de baixeza nunca
atingidos antes numa disputa política. Jamais apurou coisa nenhuma. Ocultou
crimes. Comportou-se nos interrogatórios como uma delegacia policial de
ditadura; ofendeu, perseguiu e pisoteou os direitos das testemunhas como
cidadãos e como seres humanos. Mentiu a partir do primeiro dia, e não parou até
o último. Entregou-se de corpo e alma ao falso testemunho e a provas que não
convencem um aluno de curso primário. Não investigou coisa nenhuma — só acusou,
como se os interrogados fossem criminosos e já estivessem condenados antes de
abrir a boca. Inventou, e jogou em cima do governo, crimes que não existem na
lei brasileira.
Não teve um único momento de
luz. Era natural, nessas condições, que acabasse como acabou: num funeral de
terceira categoria, com seus donos se comendo entre si e uma lista de acusações
oficiais integralmente miserável na sua qualidade e na sua consistência.
Da
política brasileira, em geral, pode se esperar tudo, e do Senado, em
particular, não se deve esperar nada
Qual a surpresa? O relator da CPI, Renan Calheiros, é possivelmente o cidadão mais enrolado com o Código Penal Brasileiro que habita neste momento o Congresso Nacional — nove processos no lombo por corrupção estilo-livre, ou todos-os-estilos, fora 20 anos de frequência à seção policial mais pesada do noticiário político. O presidente é outra piada sinistra: vem do Amazonas, o Estado onde mais se roubou dinheiro público destinado ao combate da covid. (Num certo momento faltou oxigênio em Manaus, uma responsabilidade direta e elementar das autoridades locais; meteu-se a mão em tudo, por ali.) Ele mesmo, Omar Aziz, aliado direto da politicalha local, esteve envolvido até o talo em investigações de corrupção na área da saúde; sua própria mulher e irmãos chegaram a puxar cadeia fechada sob acusações de ladroagem no mesmo setor. Nenhum dos seus principais subordinados, com problemas que foram da inépcia à histeria, teve comportamento melhor.
Nada mais natural, assim, que
a CPI tenha acabado como está acabando — com acusações mútuas de jogo baixo
entre os grupinhos que mandavam na operação, xingatório de mãe e falta de
acordo, sequer, sobre a data de publicação do relatório. Pior: não se sabia até
a última hora do que, exatamente, estavam acusando o governo. Nem isso, depois
de seis meses inteiros sem pensar em outra coisa? Nem isso.
Da política brasileira, em
geral, pode se esperar tudo, e do Senado, em particular, não se deve esperar
nada — tudo normal, portanto, com o nível de qualidade infame da CPI. O que
sobrou de mais chocante no caso, na verdade, foi o comportamento que a mídia
considerada de elite, a começar pelo julgamento que ela faz de si própria, teve
diante de todo esse desastre. A imprensa brasileira, a partir do primeiro
minuto, renunciou à sua função profissional de levar ao público informações
objetivas sobre os fatos ligados à investigação — e de fazer suas análises com
um mínimo de lógica e respeito às realidades. Em vez disso, atirou-se a uma
militância política aberta, agressiva e sem freios em favor do relator e do
presidente da comissão, mais os seus ajudantes de ordem — como se, no seu
conjunto, fosse uma espécie de jornal oficial dos donos da CPI e do condomínio
de partidos políticos interessados na sua exploração.
Foi assim que se viu, nos últimos
seis meses, um espetáculo realmente notável: jornalistas empenhados em
servir a Renan, a Omar e a todos os que se dedicam a usar a CPI como ferramenta
para virar a mesa; agiram o tempo todo como polícia, delatores e assistentes de
acusação. Continuam a agir assim.
O fato é que as duas figuras
centrais da CPI, Renan e Omar, foram transformadas de abril para cá, por
decisão da mídia, em dois dos mais notáveis patriotas que a República já
produziu em seus 132 anos de existência. Como entender um negócio desses? Com
outros personagens, quem sabe — mas com esses dois aí?
Tudo bem: a imprensa
brasileira sofre, já há anos, de uma síndrome que não tem cura — o ódio a Jair
Bolsonaro, que é tratado como se fosse o ser humano mais calamitoso que já
apareceu neste mundo desde o nascimento de Caim. É irracional, envolve questões
de descompensação psíquica e, mais do que tudo, produz um subjornalismo de teor
cada vez mais baixo — mas o que se vai fazer? A vida das paixões leva mesmo a
esses territórios escuros, e o público já se acostumou à mídia que tem.
O extraordinário, no caso, é o
apagão geral da imprensa quanto aos dois gestores da CPI — uma espécie de
“queda no sistema” que responde pela estabilidade básica da atividade mental
das pessoas. Como é possível alguém ser jornalista profissional e, ao mesmo
tempo, ser capaz de passar seis meses inteiros de CPI sem dizer, uma única vez,
quem são — do ponto de vista penal — o seu relator e o seu presidente? Aí já é
mais do que militância política; é desvario.
Tão
surrealista quanto os crimes de cloroquina e de genocídio é o crime de falta de
planejamento, uma das joias da coroa entre as denúncias
Se a mídia brasileira não
conseguiu — ou não quis conseguir — dizer para os seus leitores, ouvintes e
telespectadores quem são os homens a quem entregou as suas manchetes e o seu
horário nobre durante os últimos 180 dias, é natural, também, que tenha
fornecido uma certidão oficial de acusação séria, legal e técnica a cada um dos
delírios produzidos pela CPI. Todo tipo de ilegalidade, ou de simples
estupidez, cometido pelos acusadores foi aceito sem um mínimo de olhar crítico
— ou a mera verificação dos fatos — por parte da mídia.
Testemunhas foram humilhadas
na frente dos jornalistas sem se ouvir um pio. Insultos grosseiros foram tratados
como perguntas legítimas. Publicou-se com a maior seriedade do mundo que um dos
crimes cometidos pelo presidente da República foi ter permitido ou incentivado
a distribuição de “kits” com cloroquina — um tratamento absolutamente
legal e publicamente reconhecido como válido pelo Conselho Federal de Medicina.
Como assim, “crime”, se milhares de médicos em todo o Brasil receitaram
cloroquina para os seus pacientes, e se o CFM atestou que cabe aos
profissionais aplicarem as terapias que julgarem mais acertadas, como em toda e
qualquer doença?
E o “crime de genocídio”,
então, expressamente descrito na lei brasileira como o conjunto de ações
praticado com a intenção deliberada de destruir “grupo nacional, étnico, racial
ou religioso?” Há seis meses a imprensa aceita as acusações formais feitas na
CPI de que Bolsonaro cometeu genocídio — uma denúncia tão patética que acabou
sendo retirada pelos próprios acusadores. (Retirada contra a vontade de Renan,
o herói número 1 da mídia.)
Tão surrealista quanto os crimes
de cloroquina e de genocídio é o crime de falta de planejamento, uma das joias
da coroa entre as denúncias. Como adotar um “plano nacional” se, por decisão
formal do STF, nenhum ato ou projeto do governo federal poderia interferir nas
decisões das “autoridades locais”? Esse o nível das acusações oficiais da CPI.
Esse é o nível em que a imprensa se colocou.
O coroamento da história toda
foram as expressões de pesar explícito que ocuparam o noticiário quando os
acionistas majoritários da CPI, divididos por mesquinharias pessoais,
interesses contrariados e ambições mal definidas, chegaram aos dias finais brigados
uns com os outros. A imprensa derramou lágrimas, então, lamentando a “desunião”
entre os inquisidores — no “momento decisivo”, comentou-se, eles deveriam fazer
uma frente única contra Bolsonaro, em nome de “todos nós”. Nós quem? Não o
público em geral, com certeza — mídia e público caminham há muito tempo em
direções opostas.
Renan é Renan, Omar é Omar.
Mas a imprensa brasileira deveria ser outra coisa.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista OESTE, nº 83, 22-10-2021
Relacionados:
Experimente!
Renan lê relatório de ficção da CPI - Os Pingos nos Is – 20 de outubro de 2021
CPI não entregou nada além de gritaria
Palhaço Pão de Ló reclama ao ser comparado com senadores brasileiros
Esta gente não se enxerga
Sim, da China
CPI da Covid: uma história que termina em ruínas
O tribunal da desordem
Inacreditável e enojante
Mais de 870 advogados assinam manifesto em defesa do CFM
Os aloprados inquisidores da CPI
Janaina Paschoal: "Deixem quem entende de saúde trabalhar, pelo amor de Deus!"
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-