O STF é hoje o principal promotor da insegurança jurídica no país. Pode? Não deveria poder, mas na prática é exatamente assim que se passam as coisas
J. R. Guzzo
Foto: Nelson Jr/SCO/STF |
O
que vale é aquilo que o gestor da Justiça quer — e, quanto mais alto o gestor,
mais ele pode querer
O Brasil, nesse tipo de calamidade, está sempre ganhando a medalha de ouro; é hoje um dos países de maior insegurança jurídica do mundo, incluindo qualquer fundão da África, e o nevoeiro legal que torna tudo incerto por aqui, o tempo todo, é um dos principais motivos do nosso atraso. Ninguém, pessoa física ou jurídica, empresa privada ou pública, jamais tem certeza — não precisa ser certeza absoluta, é claro, mas uma mera expectativa racional — dos seus direitos; também não sabe, nunca, quais são as suas obrigações. Uns e outros são estabelecidos, na prática, pelos 25.000 mandarins, talvez, que habitam atualmente no sistema judiciário nacional. Trata-se de uma pasta incompreensível — um delírio que vai do Ministério Público Federal aos Ministérios Públicos Estaduais, do Ministério Público do Trabalho ao Ministério Público do Meio Ambiente, das Defensorias Públicas (da União e dos Estados) aos juízes federais e estaduais, mais os tribunais de alçada, e os tribunais de justiça, e os tribunais regionais, e os tribunais superiores, e o Supremo Tribunal Federal. É um milagre que saia alguma coisa razoável de um negócio desses.
Os magistrados, naturalmente,
ficam horrorizados quando alguém menciona a falência do Judiciário brasileiro
como um sistema de prestação de justiça — a começar pelo fato de que a
população nunca sabe o que vale e o que não vale na lei. Todos garantem que os
direitos e deveres do cidadão estão perfeitamente definidos na Constituição,
nos Códigos e nos outros 10 milhões de leis (ou mais?) hoje em vigor neste
país. Qual seria o problema, se temos lei para tudo? O problema é que não é
assim na vida real — as regras podem estar na lei, mas não estão na existência
das pessoas. O que vale mesmo, aí, é aquilo que o gestor da Justiça quer — e,
quanto mais alto o gestor, mais ele pode querer.
Nada resume tão bem a atuação
aberrante da Justiça brasileira quanto a conduta rotineira do Supremo Tribunal
Federal, a Corte de justiça mais elevada do Brasil. O STF é hoje, simplesmente,
o principal promotor da insegurança jurídica no país. Pode? Não deveria poder,
mas na prática é exatamente assim que se passam as coisas: o Supremo, em sua
posição de último degrau da escada em que se define o que é legal e o que é
ilegal está sendo, na verdade, o primeiro lugar onde essas duas coisas se
confundem. Hoje o tribunal decide que isso ou aquilo vai ser assim, porque
interessa pessoalmente ao ministro Fulano que seja assim. Amanhã decide-se que
vai ser assado, porque o ministro Beltrano quer que seja assado. É óbvio que
nunca vai dar para saber, desse jeito, se a próxima sentença, sobre os mesmos
fatos, vai ser assim ou assado.
A última demonstração desse
tipo de insanidade acaba de ser dada pelo ministro Ricardo Lewandowski. Como é
do conhecimento geral, o senador do Amapá que preside neste momento a Comissão
de Justiça do Senado vem se comportando há três meses como um desordeiro:
recusa-se, por despeito e por interesses pessoais contrariados, a colocar em
votação o nome indicado pelo presidente da República para a vaga que existe no
momento no STF. Só no Brasil: um cidadão eleito senador com meia dúzia de
votos, num eleitorado inferior ao de Osasco, impede, absolutamente sozinho, uma
nomeação essencial para que o mais elevado tribunal do Brasil possa funcionar
com seu efetivo completo.
Barroso
decide uma coisa, Lewandowski decide o oposto, e fica tudo por isso mesmo
Muito bem — e aí, o que faz o
STF? Dois senadores entraram com um pedido para que o Supremo obrigue o tal
presidente da Comissão de Justiça a colocar em votação, como estabelece a lei e
exige a lógica, o nome do novo ministro. Lewandowski, a quem coube se
manifestar no caso, mandou deixar tudo assim mesmo — segundo ele, o STF não
pode “interferir” em decisões de um membro da hierarquia do Senado. É mentira:
ele fez isso unicamente porque é inimigo declarado e militante do presidente da
República, advoga no plenário em favor de Lula e acumpliciou-se na desordem
promovida pelo presidente da Comissão porque calcula que isso vai prejudicar o
governo. Nada de muito anormal, até aí — esse Lewandowski se comporta assim
mesmo. O prodigioso, na história toda, é que apenas seis meses atrás, em abril
último, os dois mesmíssimos senadores fizeram o mesmíssimo tipo de pedido ao
mesmíssimo Supremo Tribunal Federal; queriam, então, que o STF obrigasse o
presidente do Senado a abrir a infame “CPI da Covid”, decisão que o homem não
queria tomar, valendo-se dos seus direitos regimentais. Tudo igual, portanto —
só que a decisão do tribunal, naquela ocasião, foi exatamente contrária à que
foi tomada agora.
O ministro Luís Roberto
Barroso, no primeiro pedido dos dois senadores, ignorou por completo a suposta
independência do Legislativo; não lhe passou pela cabeça que o STF não pode
“interferir” em decisões de um membro da hierarquia do Senado, como diz
Lewandowski. Mandou o presidente do Senado instalar a CPI e pronto — a
“separação de Poderes” que vá para o diabo que a carregue. A conclusão de toda
essa comédia é uma só: Barroso decide uma coisa, Lewandowski decide o oposto, e
fica tudo por isso mesmo. Qual é a seriedade de um negócio desses? Ambos, com
as suas togas pretas e discurseira em mau latim, fazem de conta que estão na
Corte Suprema dos Estados Unidos; na vida real são apenas dois magnatas do
Brasilzão atrasado de sempre, entregues às suas pequenas miudezas, pequenos
interesses e pequenos talentos.
Decisões absolutamente
contrárias entre si, no mesmo tribunal, sobre o mesmo assunto e quase ao mesmo
tempo — se isso não é criar insegurança jurídica, direto na veia, então o que
seria? Os ministros, por meio de suas ações concretas, estão mostrando que o
Supremo Tribunal Federal não abre mão de viver num país subdesenvolvido.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista OESTE, nº 82, 15-10-2021
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