Folha atropela a Constituição e viola o sigilo da fonte alheia
Augusto Nunes
— Os coleguinhas estão
enciumados — informou a assessora, referindo-se aos jornalistas do Estadão e
da Folha de S. Paulo. — Acham que a Veja tem
tratamento privilegiado.
Depois de alguns segundos de
silêncio, Fernando Henrique quis saber se me opunha à entrada dos queixosos.
— O senhor é quem decide — saí
pela tangente. — Mas acho bom deixar claro que as fotos estão embargadas até o
encerramento da apuração.
Os quatro jornalistas concordaram
sem hesitação com os termos do acordo. No dia seguinte, descobrimos que a Folha resolvera
antecipar-se à Veja e ao Estadão: lá estava a foto
embargada arrendando um latifúndio de papel na primeira página. O repórter
alegou mais tarde que o editor de Política se limitara a lembrar aos dois
subordinados que nenhum deles estava autorizado a fechar acordos em nome do
jornal. Ainda hoje a foto é apresentada como prova do presunçoso açodamento de
um poço de vaidade. Tremenda fake news. Fernando Henrique foi
vítima de mais uma prova contundente de que a Folha não tem
palavra.
Entrevistado pelo programa Direto ao Ponto, da Jovem Pan, o jornalista Alexandre Garcia resgatou outro episódio exemplar. Ele era subsecretário de Imprensa Nacional do governo João Figueiredo quando foi encarregado de escalar o grupo de colegas que testemunhariam um encontro entre o presidente da República e o cardiologista Euryclides Zerbini. A pedido de amigos e parentes de Figueiredo, o médico famoso tentaria publicamente convencer o chefe de governo a abandonar o cigarro. Foi o que fez quando a conversa ia chegando ao fim. Zerbini insistiu em saber o que impedia o anfitrião de livrar-se do vício. A resposta emergiu já com cara de manchete: “Doutor, eu não paro de fumar porque não tenho caráter”. Garcia assustou-se: “Imaginei o Hélio Fernandes afirmando na primeira página da Tribuna da Imprensa que Figueiredo finalmente havia reconhecido que não tem caráter”, contou Garcia, que foi à luta: por telefone, repetiu aos participantes do encontro, um por um, o mesmo pedido escoltado pelo mesmo argumento. “Não use aquela frase, por favor. No Rio Grande do Sul, não ter caráter quer dizer que a pessoa não tem força de vontade.” Todos prometeram atender ao apelo, inclusive o enviado pela Folha. Todos cumpriram a promessa, menos a Folha, que incluiu na reportagem a frase que atribuía o tabagismo à falta de caráter.
Entre leitores capazes de assoviar e caminhar ao mesmo tempo, esses registros na folha corrida podem ter abrandado a surpresa, mas não o assombro provocado pela manchete da edição deste 7 de outubro, uma quinta-feira: BLOGUEIRO BOLSONARISTA USA DE INFORMANTE ESTAGIÁRIA DO STF. Sete palavras e uma sigla resumem a reportagem, torpe na forma e sórdida no conteúdo, que se baseou em diálogos telefônicos grampeados pela Polícia Federal para concretizar uma façanha e tanto. Simultaneamente, a Folha conseguiu reduzir a farrapos bandeiras que vive hasteando ao som de tambores e clarins, violentar a Constituição com o estupro do sigilo da fonte e consumar o parto do jornalismo de delação.
“Blogueiro bolsonarista” foi a
expressão escolhida para esconder a atividade profissional de Allan dos Santos,
que comanda o portal Terça Livre e é tão jornalista quanto qualquer condecorado
com um crachá da Folha. A palavra “informante”, pinçada do jargão
policial, tentou transferir para uma fonte o papel que a Folha desempenhou:
dedo-duro. As patéticas trucagens se completaram com o termo “estagiária”, que
confere ares de jovem avoada à brasileira Tatiana Garcia Bressan, de 45 anos,
que trabalhou por 18 meses no gabinete do ministro Ricardo Lewandowski. Essas
piruetas semânticas tentaram camuflar a verdade vergonhosa: a Folha pariu
a imprensa delatora para transformar em casos de polícia um jornalista e uma
funcionária que o ajudara a ver o Supremo como o Supremo é. Nada do que Tatiana
revela surpreende quem conhece o Pretório Excelso. Num dos trechos destacados
pelo jornal, por exemplo, Tatiana diz que se espantou ao constatar que os
ministros mudam frequentemente de ideia quando políticos de estimação
necessitam de ajuda. Ganha uma viagem só de ida para a Venezuela quem ainda não
sabia disso.
O
que seriam “jornalistas de verdade”? Os formados por faculdades de
comunicações?
A delação pareceu funcionar.
Na edição seguinte, a Folha noticiou que o ministro Alexandre
de Moraes anexara a “informante” ao inquérito das fake news (podem
chamá-lo de “inquérito do fim do mundo”; ele atende). A medida incorporou a
delatada ao elenco de depoentes na mira da Polícia Federal. Previsivelmente,
redes sociais trataram de fechar a Allan dos Santos os espaços que ocupa. Mas o
jornal que faz o diabo para derrubar o presidente fora longe demais. Dois dias
depois da feérica entrada em cena, o caso caiu fora da Folha à
francesa — e não voltou a dar as caras sequer nas páginas internas. O
jornalista Nelson Rodrigues provavelmente teria sugerido que os autores da
ignomínia se sentassem no meio-fio, chorando lágrimas de esguicho, até se
sentirem prontos para a expiação da torpeza numa seção “Erramos” de página
inteira. Em vez disso, os envolvidos no espetáculo da infâmia andam murmurando
por aí que só jornalistas de verdade têm direito ao sigilo da fonte.
O que seriam “jornalistas de
verdade”? Os formados por faculdades de comunicações? De jeito nenhum, garante
o editorial da edição de 19 de junho de 2009, que exaltou o Supremo Tribunal
Federal por ter abolido a exigência do diploma para o exercício da profissão.
Trecho: “O que nunca se justificou — e vai se tornando cada vez mais anacrônico
diante da proliferação do jornalismo pela internet — é restringir-se apenas aos
detentores de diploma específico uma atividade que só se beneficia quando
profissionais de outras áreas — médicos, biólogos, historiadores, filósofos —
encontram lugar nas redações.” Outro parágrafo ensina que esse tipo de
impedimento, “desconhecido na ampla maioria dos países democráticos, é
incompatível com o direito à informação, com a liberdade profissional e com a
realidade, cada vez mais complexa, do jornalismo contemporâneo”.
Coerentemente, vagas na
redação e cargos de chefia estão ao alcance de gente que nunca viu de perto um
professor de jornalismo. O próprio Otavinho Frias preparou-se para fundar
a Folha moderna na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
É natural que tenha dispensado da apresentação de diplomas os originários de
outras ramificações do conhecimento humano que hoje integram o primeiro
escalão, como Gustavo Patu, Uirá Machado e Hélio Schwartsman. Erros cometidos
por algum deles não podem ser atribuídos à formação profissional. Não foi por
falta de estudos específicos, por exemplo, que Schwartsman confessou torcer
pela morte do presidente da República. O que falta é parafuso. Ou juízo. Ou
caráter. E o que sempre sobra é a vontade de fazer bonito nos bares da Vila
Madalena frequentados pelos rapazes da imprensa. Allan dos Santos não é menos
jornalista que carrascos homiziados em colunas de papel. O problema é que não
deseja morte de nenhum adversário político. Pior: não apoia o impeachment de
Jair Bolsonaro. Pior ainda: convive muito bem com presidente da República.
O jornalista alvejado
pela Folha decidiu processar Alexandre de Moraes pela quebra
do sigilo da fonte. É mais uma evidência de que não houve nada de ilegal nas
relações com Tatiana. Ainda que houvesse, ele seria beneficiário do precedente
aberto por Glenn Greenwald. Suspeito de envolvimento no roubo de mensagens
trocadas entre juízes e procuradores federais engajados na Operação Lava Jato,
Glenn foi socorrido pelo ministro Gilmar Mendes, que proibiu qualquer tipo de
investigação contra o advogado norte-americano que a Folha, em nome
da coerência, deveria qualificar de “blogueiro lulista”. Caso alguém insistisse
em investigá-los, Allan e Tatiana poderiam incorporar aos argumentos da defesa
a montanha de artigos e reportagens que a Folha publicou em
louvor da inviolabilidade do sigilo da fonte.
Já que vai processar Alexandre
de Moraes, Allan poderia interpelar a Folha e a Polícia
Federal sobre o vazamento das conversas que teve com a funcionária do STF. Quem
entregou a qual jornalista a transcrição dos diálogos telefônicos? Vai ser
divertido ver a Folha, no esforço para livrar-se de enrascadas
judiciais, recorrer ao sigilo da fonte que acabou de estuprar.
Título e Texto: Augusto Nunes,
revista
OESTE, nº 82, 15-10-2021
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