Péricles Capanema
Registro necessário. Tecerei pequenos comentários sobre fatos amplamente divulgados. No meu caso, estes foram respigados em especial na extensa reportagem de Vinicius Konchiski, que relatou com precisão a realidade macabra e multifacetada; não floreou, não enfeiou.
Dependência estatal. Vou entrar por um atalho, daqui a pouco voltarei ao estradão. Criada em 1914, até hoje a reserva não anda pelas próprias pernas, depende do Poder Público e de entidades privadas assistenciais. Culpa dos índios? Não. De ideias regressistas, muitas vezes entulhos autoritários, que impedem o avanço. Em resumo, as ajudas e compensações, necessárias e louváveis, deveriam com compasso, gradualmente, estimular a autonomia; e depois a liberdade dos assistidos. Como uma mãe faz com o filho — o auxílio afetuoso é formativo, molda a personalidade, prepara para a vida em liberdade.
Servos da gleba para sempre.
O regime legal das reservas não ajuda. Disfarça-se a realidade, mas o que se
perpetua no Brasil, quanto aos índios, é versão adaptada do servo da gleba
medieval. Na Idade Média, o senhor feudal mantinha a propriedade da terra; em
troca os servos da gleba gozavam de estabilidade, proteção e segurança. Hoje, o
senhor feudal (o Estado) mantém a propriedade da terra. Oferece em troca, mais
na promessa que na prática, proteção e segurança. Com piora. O senhor na Idade
Média era próximo, morava no castelo ao lado, acolhia-os ali, conversava com
eles. O senhor hoje é o Estado-Moloch, sem face, impessoal, totalitário,
distante.
Apunhalados no direito de
melhorar de vida. Indígenas mais esclarecidos, asfixiados com a
petrificação da política do retrocesso, querem já deixar a efetiva e
inconfessada situação de servos da gleba. A tutela prolongada e indefinida os
está asfixiando. Relembro. A Constituição de 1988 (artigos 231 e 232) concede
aos indígenas posse permanente, direitos imprescritíveis e inalienáveis, uso
fruto exclusivo. Nunca o domínio. E ainda impõe lista amazônica de restrições.
Os indígenas, em movimento crescente, querem ter os direitos do brasileiro
comum, caminhar com sensatez na trilha da autonomia crescente para um dia
chegar à liberdade inteira. De passagem, aspiração justíssima, a liberdade em
todo os âmbitos é direito humano fundamental. Tais indígenas, pelo menos boa
parte de seu setor mais atuante, estão agrupados na COOPAIBRA — Cooperativa de
Agricultores e Produtores Indígenas do Brasil. Lutam para atualizar a
legislação, empreender em suas terras, produzir e comercializar. Enfim,
mediante a iniciativa privada, crescer na vida, educar-se, viver melhor, tirar
seus povos da pobreza, do alcoolismo, das drogas. De quebra, sair da humilhante
situação de servo da gleba. Com isso, além de alargar as próprias
possibilidades de melhorias e as de sua família, serão mais úteis à sociedade.
Na paradeira putrefaciente da presente situação, que ameaça se ampliar,
manteremos indefinidamente os pântanos (caldos de cultura) em que pulularão sem
fim casos como o de Raíssa. Secar tais pântanos, política indispensável e
urgente.
Inclusão e avanço para os
indígenas. Os índios têm direito de deixar o gueto dos excluídos, para onde
foram empurrados por décadas de imposições “progressistas”, de fato fontes de
atrasos. Faltam oportunidades, faltam possibilidades. Com a mudança do quadro,
viriam emprego, renda, saúde e educação melhores; enfim, vida mais humana.
Recurso extraordinário
1.017.365. A propósito, está em julgamento no Supremo o Recurso
Extraordinário 1.017.365. Se obter maioria de votos, teremos aumento das áreas
destinadas às reservas indígenas, onde continuarão existindo, será o normal
trágico, situações parecidas à da Reserva de Dourados. À vera, favorece a
fossilização de uma estrutura legal e a predominância de grupos políticos, cuja
ação leva ao retrocesso e exclusão social. Mais reservas, mais paradeira,
decomposição social, dinheiro público jogado no ralo, indígenas servos da gleba
para sempre. De outro modo, menos autonomia, vida com menos oportunidades, mais
tutelas estatais, horizontes fechados. As patrulhas do retrocesso, uma vez
mais, terão barrado as rotas de crescimento pessoal para as etnias indígenas. O
recurso já tem o voto favorável do ministro relator Edson Fachin. Goza ele
ainda de grande algazarra publicitária. No bumbo, puxando a fileira da
vanguarda do atraso, os de sempre: o pessoal da CNBB, CIMI e PT. O programa em
duas palavras está claro: na mão cada um ostenta uma moeda no alto: na cara,
blasonam compaixão; na coroa, promovem ações de efeitos cruéis para com as
populações indígenas. Logo atrás, no mesmo cordão da crueldade, a corneta da
Procuradoria Geral da República. A FUNAI é recorrente.
Falta uma proposta. Como, parece, está em falta uma proposta de solução, um caminho. Submeto-a ao crivo de todos. Joguem pedras à vontade. É resumo, linhas gerais, trajes matutinos. No encaminhamento de problemas assim, delicados e espinhosos, normal seria um debate nacional que reunisse lideranças indígenas responsáveis, produtores rurais das regiões mais afetadas, figuras de relevo da ciência e da experiência. Claro, prefeitos e deputados das áreas em questão. Suas conclusões, fruto do amadurecimento de muitos pontos de vista, seriam então encaminhadas para o Executivo que, com base nelas, patrocinaria iniciativas legislativas factíveis, realmente favoráveis aos povos indígenas e aos produtores rurais, tantas vezes adversários na propaganda falaciosa, de fato irmanados profundamente no interesse de desenvolver rincões ainda inexplorados do Brasil. É pedir demais?
Improvisação para ajudar.
Em maio de 2020 a Secretária de Segurança Pública do Mato Grosso do Sul doou
aos indígenas das aldeias Bororó e Jaguapiru duas caminhonetes Blazer, ano
2008, já retiradas do serviço pela PM; iriam ser leiloadas. Hoje são utilizadas
no patrulhamento. Às vezes, os veículos quebram, é difícil arranjar dinheiro
para o conserto. Falta gasolina, o mesmo problema, vaquinhas, cada um ajuda um
pouco. Continua o capitão Benites: “A gente sai atrás dos barzinhos,
das casas onde o pessoal está com o som muito alto, com cachaça na mão, e
procura pedir para maneirarem na bebida”. É proibida a venda de bebidas
para menores de 18 anos e a de drogas, claro. Pouca gente obedece, impunidade
generalizada. Benites e seus colegas de farda tentam impedir o tráfico e o
consumo ilegal de bebidas: “Vamos na cara e coragem, pondo em risco a
própria vida. Só levo um pau comigo, para caso de emergência mesmo. Um dia
desses, meteram o pé no vidro da camionete e quebraram. Agora, precisamos
juntar dinheiro com a comunidade para consertar”. Nesse ambiente viveu
Raissa 11 anos.
Burocratismo sufocante. Verifiquei no artigo de Vinicius Konchinski os órgãos públicos que trabalham para ajudar a população que mora na Reserva de Dourados (repito, indígenas, mestiços, brancos, negros). Polícia Civil do Mato Grosso do Sul, Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul, NUPRIR (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e de igualdade Racial e Étnica da Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul), SEJUSP (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança do Mato Grosso do Sul), Universidade Federal da Grande Dourados, FUNAI (Fundação Nacional do Índio), Ministério da Saúde, Ministério da Educação, governo do Mato Grosso do Sul, Prefeitura de Dourados, Defensoria Pública da União, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul. Certamente está incompleta a lista.
Ademais, trabalham ali organizações particulares de assistência. Temos um aranzel de competências misturadas na confusão: exclusiva, privativa, comum, concorrente. Um exemplo. Fato pungente, repetitivo, muitos indígenas se suicidam na Reserva de Dourados. Em 2019 (estamos caminhando para o fim de 2021) foi proposto pelo MPF-MS e Defensorias um acordo extrajudicial entre os governos (União, Estado, Município) para estudar e minorar o problema. O Estado alegou que seria necessário para tal uma lei aprovada pela Assembleia Legislativa. Tudo parado, até hoje inexiste projeto de lei a respeito.
Outro exemplo, as informações fornecidas pela FUNAI
ao repórter: “A Funai informou que questões relativas à saúde dos
indígenas e ao abuso de álcool e drogas são competência do Ministério da Saúde.
Já a educação é responsabilidade do Ministério da Educação, governo do Mato
Grosso do Sul e prefeitura de Dourados. Sobre a morte de Raíssa e a violência
na Reserva de Dourados, a Funai declarou que acompanha os casos e subsidia
tecnicamente os órgãos de segurança pública”. Ponto final; a burocracia
resolveu a questão. Estão aí em ação, um pouco mais, um pouco menos, as
estruturas de proteção de todas as Raíssas no Brasil,
Utopias destruidoras.
Não existe apenas o burocratismo sufocante que torra dia e noite o dinheiro
público. Pior ainda, sob certos aspectos, é o utopismo dominante em
universidades, igrejas, redações e órgãos públicos. Transcrevo análise
expressiva, constante do site do CIMI (autora, Iara Boniin):
“Sob os princípios da
reciprocidade entre as pessoas, da amizade fraterna, da convivência com outros
seres da natureza e do profundo respeito pela terra, os povos indígenas têm
construído experiências realmente sustentáveis que podem orientar nossas
escolhas futuras e assegurar a existência humana. Estes povos têm nos ensinado
que para construir o Bem Viver as pessoas devem pensá-lo para todos. Isso
significa dizer que é preciso combater as injustiças, os privilégios e todos os
mecanismos que geram a desigualdade. Assim, a ‘causa’ indígena se vincula com a
‘causa’ dos pobres e marginalizados.”
De outro modo, a solução é o
nivelamento. Imposto com base em slogans e frases feitas, de costas para a
realidade. É o Bem Viver. Na realidade tais utopias conduzem de forma
incoercível (as experiências históricas o provam) para um só fim: ditadura e
miséria. Desses ares tóxicos são sopradas soluções para ajudar as Raíssas
espalhadas pelo Brasil.
Fecho inesperado.
Apresento conclusão inopinada. De alguma forma, contudo, exigem-na o impulso de
limpeza de panoramas. Detergente do espírito. Nem vou comentar o que está
acima, fala por si. O leitor talvez ainda precise de remanso diante de tanto
horror. “Senhor Deus dos desgraçados, Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é
loucura … Se é verdade. Tanto horror perante os céus!”
Contraste com a vida do
padre Antônio Vieira. Encontrei o remanso (ou o detergente) em texto de
1903 — conferência sobre a vida do padre Antônio Vieira (1608-1697) — de Carlos
de Laet (1847-1927), grande escritor, católico e monarquista, batalhador toda a
vida, polemista temido:
“O que mais particularmente
nos interessa na vida de Vieira, é, senhores, o santo amor que sempre dedicou à
catequese e à liberdade dos índios. Os brancos efetuavam pelo âmago do país
correrias em que aprisionavam e reduziam a cativeiro os prófugos selvagens.
Arrancavam-lhes as mulheres e as filhas, matavam as crianças, e dos homens
válidos faziam, à força de pancadas, servos para os trabalhos rurais. Era a
escravidão debaixo da forma mais odiosa. A nossa história colonial está cheia
desses horríveis atentados, eterna vergonha pela intrépida iniciativa dos
nossos avós. Pois bem, senhores, foi contra esta ordem de coisas que se ergueram
os jesuítas e à frente deles o famoso Vieira”.
Missionava mais de duzentas
mil pessoas (a maior parte, indígenas) em meados do século XVII. Cita então
um conhecido biógrafo do jesuíta:
“O espaço desta campanha de
norte a sul (aqui chamo, senhores, vossa atenção) é de mais de quatrocentas
léguas por costa; as cristandades e aldeias que nelas se contavam, eram
cinquenta e quatro; as almas, passam de duzentas mil. Não se contém nesta
resenha com estância determinada, porque queria estar em todas, o capitão e
cabo de todos, o padre Antônio Vieira; porque, disposto primeiro o seu exército
para a parte do norte, isto é, do Maranhão até o rio dos Amazonas, reserva-se
para passar ao sul até a Fortaleza do Ceará”.
Dois colégios na selva,
internatos e externatos para indiazinhas. E então fala Carlos de Laet:
“Eu vos pergunto, senhores,
onde atualmente os planos de civilização dos indígenas, os quais com este se
possam comparar? […] São dominicanos estrangeiros os que ora catequizam nas
margens do Araguaia, em territórios do Pará e de Goiás. Fundaram ali a colônia
da Conceição do Araguaia, núcleo de mais de quatro mil pessoas; mantêm dois
colégios, um internato de cinquenta meninas, e um externato para número indeterminado
de meninas, dirigido este pelas irmãs Dominicanas. […] Não acompanharei,
senhores, o padre Vieira em todos os incidentes da sua longa existência. Para
isto fora mister não uma, porém muitas conferências. O que fica dito, é o
essencial”.
Exemplo e obrigação.
Raíssa teve a existência decepada, quando despertava para a vida. Que sua morte
desperte iniciativas salvíficas. Não assassinemos as esperanças de milhões de
indígenas, irmãos e irmãs dela. Padre Antônio Vieira, protegei-os. E que seu
amor pelos indígenas, energia, atividade séria e senso do real iluminem os
setores que deles se ocupam entre nós.
Título, Imagens e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
18-10-2021
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