sexta-feira, 29 de outubro de 2021

[Aparecido rasga o verbo] Imensidão à deriva

Aparecido Raimundo de Souza

O DIA DE ONTEM acabou mais cedo e eu nem me dei conta da sua escalada meio que premeditada. Quando percebi, a televisão havia se desligado automaticamente e o relógio marcava quatro horas de um novo dia que se iniciava. Tudo foi tão rápido e apressurado, tão diligente e conciso... desde as primeiras horas, tive a impressão de que o tempo trazia, consigo, uma pressa impulsiva de chegar correndo em algum lugar. Não sei onde, mas havia, juro que havia, uma espécie nova de metamorfose caótica pairando sobre o céu esmaecido da cidade.

Igualmente, descobri uma estranha alteração de conduta estampada em cada pessoa com quem cruzei pelas ruas e praças, assim como uma alomorfia que podia se ver e se sentir no vai-e-vem da multidão afobada, atabalhoada, como se o planeta fosse explodir e se desintegrar no minuto seguinte. Mesmo passo, pressenti algo incomum na balbúrdia desembestada dos transportes coletivos que deixaram passageiros furiosos e com as caras de tacho nos pontos de espera, ao longo das avenidas.

Até os semáforos, eu atinei, abriam e fechavam rápido demais. Por todos os cantos e recantos se ouviam brados de insatisfações e desprazeres. Reclamações e protestos brotavam do nada cortavam o ar, apimentados com chuvas de palavrões ensandecidos de ódio e muita desolação. Lembrava um edifício em chamas com todos seus ocupantes querendo sair ao mesmo tempo numa babel confusa e algazarriante. Foi assim também com meus conhecidos próximos. Eles cruzavam comigo aos trancos e empurrões, estampavam, em seus rostos estarem possuídos pela cólera de Aquiles.

De repente, senti medo. E dentro dele me ví bombardeado, preso, algemado em meio a escombros de muros que desabavam de um lado e casas que ruíam de outro. Submetido à todas estas loucuras e exacerbações aceleradas, qualquer coisa valeria a pena para me ver livre e longe das fustigações e das barbáries, bem como das instantaneidades melancólicas que, a cada segundo, cresciam ganhando dimensões maiores. Lembro que, em contínuo, um carro, com o som muito alto, passou, ao largo dos meus receios, anunciando, com estardalhaço, o caos irremediável de tudo.

Lembrei, entrementes, de Orwell, e associei o inferno em que ele estaria metido na hora em que deu vida e forma à “1984” e às suas “Horas de Ódio”. O que aconteceu, no dia de ontem, não era, ou não foi somente uma revolução momentânea. Havia uns quadros aterradores e em tempo real, onde a massa humana comprimida se debatia em neurastenias sôfregas, em busca, talvez, de algo não achado, ou não realizado. Num dado momento, me questionei: O que aconteceu com o mundo? O que aconteceu com o meu mundo?

Ao que tudo me indicou, a conclusão final foi esta.  O meu mundo ficou louco. Pirou, assim sem mais nem menos. Qual seria o real motivo? A resposta estava bem ali, diante dos meus olhos, atropelando meu nariz. Dito de forma mais clara: o resumo se fazia precisamente agarrado nos ponteiros deste novo dia que começava. Pensei comigo. E se alguém atropelasse as horas e parasse os ponteiros, ou se, via igual, um louco varrido desse um basta no gigantesco relógio que comandava o Universo?  Quando criança, bem recordo, ao avesso deste agora, eu queria que o tempo passasse correndo.

Naqueles idos da minha infância, eu detestava as horas em que perdia confinado no grupo escolar. Odiava as aulas de educação física e matemática. Se pudesse, “botaria” os dois professores numa máquina do tempo e mandaria as criaturas embrulhadas em papel de presente para a tal da era glacial. Naquele tempo... no tempo do meu tempo, não havia máquinas de tempo, nem tempo de sobra sobrando, para se pensar em algo mais sério, ou numa solução plausível que interferisse diretamente no futuro.

Hoje, tantos anos à frente, confesso, tenho saudades da linearidade da minha quadra risonha, dos meus tempos de menino de calças curtas. Do útil inútil, das horas em que perdi nos bancos da escola. Tenho vontade, certas vezes, de voltar às noites e dias dos meus tempos de outrora, regressar aos dias de “ontem”, que pareciam mais longos, mais amenos, sem os atropelos e as desgraças que hoje, neste exato momento, pesam sobre os costados das metrópoles e me impedem de ser totalmente feliz.

Naquele tempo que não para de ficar cada vez mais distante... havia uma magia bucólica que deixava o tempo mais suave e afável, onde eu e ela, ela e eu, a minha namoradinha de vestidinho curto e franjinha cobrindo os olhos, éramos felizes e não sabíamos. Na verdade, eu não percebia a grandiosidade de estar vivendo, vivendo e sonhando, sonhando e vivendo, não atinava em aprender coisas novas. Tampouco criar vínculos que me desviassem daquele paraíso onde eu era completamente feliz e dono de tudo, sem mencionar a levíssima presença dos instantes imorredouros.

De igual forma, não me importava com o presente que logo chegaria e me levaria, aos trambolhões por caminhos incoerentes e não percorridos. Naquele tempo, não sabia, nem me dava conta de que a Felicidade... ah!  A Felicidade... meu Deus, a Felicidade se escondia – não, não se escondia... morava, radiante, tratável, urbana e sem máculas, pressurosa e incandescente, bem aqui dentro... bem aqui dentro de mim. Hoje, incrivelmente este “dentro de mim” não mais existe.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza. Home office do Sítio Shangri-La, divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. 29-10-2021

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