José Manuel
Corria o ano de 1983, plácido,
gostosamente, como tudo naquela época, ao sabor da vida, sem preocupações, sem
cobranças, sem boletos, apenas a vida curtida em seu esplendor, e como deve
ser.
Nessa época estava me divorciando,
precisava urgente de "ares" novos para respirar, e resolvi ir morar
no meu trailer em um camping no Recreio, paraíso havaiano em pleno Rio de
Janeiro.
Já estabelecido naquele lugar
paradisíaco, fui fazer um voo cujo chefe de equipe não conhecia e se chamava
KELMER, que segundo a Filomena, com esse nome, era um "alemão"
maranhense que ela conhecia de outros carnavais.
Nossa empatia foi imediata, pois ele
também estava se separando, e adorou saber que eu morava num camping.
Não muito tempo depois daquele voo,
estávamos solteiros e cada qual em seu trailer, respirando aquele gostoso ar
marinho, as delícias do mundo solteiro ao nosso alcance e com a visão do mar a
alguns metros da nossa nova base.
Foi uma época inesquecível mesclada de
grandes capitais europeias, americanas, o bucolismo de uma praia quase
selvagem, gastronomia ao ar livre e, de roupa, apenas o nosso uniforme de voo,
de vez em quando, sendo o calção de banho nosso uniforme cotidiano.
Algum tempo depois, continuava fixo com
o Kelmer nos voos, para cima e pra baixo, quando num determinado voo uma
comissária chamada Maria Irene saiu de São Paulo com as malas de voo e se
instalou no meu trailer e na minha vida até hoje, pondo um fim na minha perene
vagabundagem!
Foi uma época muito prazerosa em tudo e
por tudo. Acabamos os três ficando em tripulação fixa, a fim de facilitar nosso
deslocamento ao aeroporto, de uma área tão remota àquela época.
Paraíso à parte, com o Kelmer estavam fixos na primeira classe do DC-10, eu, a Irene e eventualmente um ou outro fixo. O Luiz Passos, o Cesar Bugre e o Odilon foram fixos conosco, cada um a seu tempo e posição.
Infelizmente não me lembro de toda a tripulação, mas com certeza jamais esqueceria o nosso Comandante naquele Miami. Uma lenda da aviação Variguiana! O indefectível HOLST [foto].
Era um voo corriqueiro de sete horas e
meia, RG 806, como tantos outros que habitualmente fazíamos e como sempre o
grandão DC-10 estava lotado, até os jump-seats, mas aquilo para nós era mais
que diversão, era um prazer.
O voo corria mansamente como sempre,
serviço de jantar quase terminando, quando o interfone soou na estação 1L.
O Kelmer atendeu e saiu correndo, pois
uma passageira estava batendo e cuspindo em todo mundo lá na econômica. A
partir desse momento o que sucederia seria surreal e hilário.
Ao chegar à zona de conflito, o Kelmer
presenciou um tapa que a passageira acabava de dar em outro passageiro e ao
tentar acalmar a situação também levou outro tapa. Ato contínuo, passou por nós
na primeira classe, como um raio, entrando no cockpit para falar com o
comandante.
Segundos depois, sai o Comandante Holst
da cabine de comando, tipo The Flash em direção à econômica, com o Kelmer atrás
e nós três só observando e claro, atônitos pela situação insólita que se
desenrolava.
Dois minutos após retorna o Comandante
Holst furioso pois tinha sido atingido por impropérios e quase, quase, outras
coisas da passageira indomável.
Decisão tomada, a passageira foi amarrada
pois não havia outro jeito para segurança do voo e eu fui lá trás ajudar a
contê-la, pois o Kelmer e o Comandante não queriam ver a mulher nem pintada de
ouro.
Enquanto tentava acalmá-la conversando
tranquilamente, ela com um olhar de ódio soltou uma cusparada em minha direção,
gritando "I HATE YOU".
Resumindo, naquele voo vários
apanharam, vários levaram cuspidas, a econômica se transformou num pandemônio
durante a noite e a passageira foi recebida em Miami pela polícia e por
paramédicos.
Nossa impressão foi a de que havia
ingerido no jantar algum tipo de barbitúrico que ocasionou um estado de euforia
psicótica.
Depois, já no hotel, rimos muito com
toda aquela situação ao mesmo tempo séria e divertida.
No dia seguinte a volta tranquila para
o paraíso, pois a praia nos aguardava com aquele cheiro de mar, sol e uma
vagabundagem deliciosa.
Se pudesse voltar àquela época, ontem
já estaria lá.
Saudades do Kelmer, meu companheiro de camping e do voo.
Assim como do Comandante Holst, uma das
nossas maiores lendas.
Foram embora cedo demais, nos deixaram
aqui com muitas saudades e a aviação nunca mais foi a mesma!
Título e Texto: José Manuel –
Varig saudosa Varig, outubro de 2021
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