José Manuel
O ano era 1971, o avião um HS-748, para nós simplesmente AVRO.
Pequeno, quarenta lugares, bimotor turbo hélice barulhento, mas pressurizado e com a confiabilidade inglesa, fazia a rede de integração nacional (RIN) por aeroportos que poderiam ser chamados de simplesmente “campos de pouso", pistas de saibro, enfim, um verdadeiro Jeep da aviação.
Cortava este Brasil de Norte a Sul, com programações de doze escalas, as
vezes voando baixo devido à curta distância entre as cidades, muitos, muitos
vômitos de passageiros de primeira viagem e rasantes na pista, para espantar o
gado antes de pousar.
Havia começado a voar recentemente, em Copacabana residindo desde pequeno
não imaginava o que era este imenso Brasil.
Quando pousei pela primeira vez em determinados campos, com indígenas nos
recepcionando, vendendo artesanato e pequenos animais silvestres, bati de
frente com uma realidade nunca imaginada. Nunca tinha visto um índio na minha
frente, e logo me deparei com tribos inteiras nos recepcionando. Aquilo para mim,
urbano da zona sul carioca, era simplesmente surreal, mas uma aula de vida sem
igual.
No início da década de 70, o voo ainda era visual por acidentes
geográficos, rádio operador a bordo com telégrafo e só podíamos voar até ao pôr
do sol. Depois disso era pernoite certo na cidade mais próxima. E aí é que
residia a magia daqueles voos e daquela época, pois conheci um interior
inimaginável para um urbanoide como eu sem nunca ter saído dos limites praianos
do Rio.
Só para se ter uma ideia, na aviação mais acima, mesmo em voos transatlânticos o navegador era um tripulante importantíssimo a bordo. Toda a navegação era feita por observação dos astros e no B-707, o sextante se adaptava em uma pequena escotilha no teto da cabine de comando.
Até hoje não sei como cabia tanta gente naquele cubículo chamado “cockpit" com o Comandante na esquerda, o 1° Oficial na direita, o 2° Oficial atrás do Comandante, o Flight Engineer atrás do 1° Oficial, o Rádio Operador na mesinha do telégrafo e o Navegador perdido nas estrelas!
Aquilo lembrava mais um submarino de tão apertado que era, mas todo mundo
se entendia muito bem naqueles prováveis cinco metros quadrados de pura
tecnologia.
Mas, voltando ao início desta narrativa, no ano 1971, eu ainda voava os
Avros que haviam chegado três anos antes para substituir os DC-3 que haviam
sido transferidos para voos no interior do Rio Grande do Sul. Gostaria muito de ter voado esse ícone da
aviação mundial, mas cheguei um pouco tarde.
Decolávamos do Santos Dumont às seis horas da manhã, para chegar em
Fortaleza, São Luís ou Belém depois de dez, onze, doze escalas. Isso
significava incríveis vinte, vinte duas, vinte e quatro operações de pousos e
decolagens. Alguém tem ideia do que é decolar e pousar tantas vezes num só dia?
No dia seguinte fazíamos tudo novamente, de volta num sobe e desce
interminável.
Nessa época e acredito ainda ter sido uma reminiscência da Real Aerovias,
empresa comprada pela Varig, nessas três bases não ficávamos em hotéis como
mais tarde, mas sim em casas de pernoite, alojamentos simples, mas com uma
culinária regional de primeira, onde éramos tratados como Reis pelo pessoal
dessas casas.
Não me recordo te ter visto em outro lugar tanta fartura de culinária e
doçaria regional como naqueles jantares inesquecíveis, onde a conversa rolava
mansa noite adentro, apesar do cansaço de tantas horas voadas.
Apenas tive um incidente no Avro, quase acidente sério, numa volta de
Belo Horizonte transportando a equipe do Cruzeiro com o radialista Jorge Cury a
bordo.
Estávamos já a três quatro metros do solo no Santos Dumont, quando esse
radialista, adentrou na cabine dizendo que o trem de pouso havia recolhido, sem
ter a menor noção do que estava fazendo. Nesse momento eu que estava sentado
entre o Comandante A. Gonçalves e o Copiloto Dexheimer, presenciei todo o
frenesi da checagem de tudo em milissegundos, se assim posso descrever o que
ocorria.
A nossa sorte, foi que a pista em que pousamos era de asfalto à época, o
que amorteceu os três cubos das rodas do trem que ficaram pela metade num
rastro de vários metros de sulcos profundos no asfalto, e sem a menor ideia
onde foram parar os pneus.
Quando a aeronave estancou, saí correndo da cabine de comando, para
checar o que havia ocorrido com os pax e com a colega comissária Lucy Teles (in
memoriam), que se encontrava petrificada no jump seat da cauda.
Tudo normal, ela também recuperada do susto, voltei ao assento do
radialista e dei-lhe um "esporro” pra ninguém botar defeito em alto e bom
som.
Depois foi só fazer todos os procedimentos de evacuação e estou aqui
contando mais uma estória da minha coleção de histórias, com final feliz.
A lamentar apenas a falta da colega Lucy.
No ano de 1970, em outubro, quando fui admitido na VARIG, como eu iria
imaginar por exemplo que os aviões modernos à época como os nossos Boeing-707,
ainda necessitavam pra fazer uma travessia atlântica, de um equipamento que o
Almirante Gago Coutinho, havia utilizado, para fazer a primeira travessia aérea
Lisboa/Rio em 1922, ou 48 anos antes, o mesmo equipamento de navegação como o
“Sextante” que usávamos naquele ano de1970?
Só para ilustrar, em 1773, Hadley apresentou esse instrumento, o sextante
de bolha, por causa da curvatura da terra, que era praticamente o mesmo que os
nossos navegadores usavam em 1970 ou desde incríveis 197 anos. Como um novato
como eu poderia entender isso?
A navegação inercial, por giroscópio e por satélite, só foi implantada na
VARIG alguns anos depois.
No Brasil, na década de 70, a aviação só era possível graças às estações
de rádio farol, ou fixos de posição instaladas pela Panair e pelos engenheiros
Morley e o Navegador Rodeck, depois professores de ensino da VARIG, na área de
comunicações, para se utilizarem como auxílio à incipiente navegação à época,
fora o contato visual, é claro.
Como era possível isso? E logo eu que me achava nas gírias da época,
moderninho e prafrentex?
As batidas de frente se sucediam, para o meu portfólio intelectual e, dos
indígenas nos campos de pouso, ao sistema de navegação usados por nós à época,
foi como revisitar a época das cavernas, para um "copetinho" à época
como eu, obviamente.
Então, rapidamente os Avros foram saindo da minha vida, e o horizonte dos
Electras e Boeings 727 se aproximou de forma muito clara, com grandes avanços
tecnológicos em especial no famoso "Boeinguinho".
O Electra era um avião maravilhoso, um dos melhores e mais confortáveis que conheci, com uma confiabilidade na VARIG, de quase 100%, um grande sucesso na ponte aérea por dezesseis anos e voando com as cores da nossa empresa durante trinta anos.
Foram um total de quinze aeronaves desde 1962, com a perda de apenas uma,
o PP-VJP, que se acidentou em Porto Alegre.
Encerrou seus voos em 1992 quando o nosso querido Comandante Lott levou o PP-VJM, primeiro Electra que chegou à VARIG para o Museu Aeroespacial da Aeronáutica (MUSAL), sob forte emoção, o que não seria para menos. Eu, que não o voei tantos anos, como o Comandante Lott, e por ter no seu prefixo as minhas iniciais JM, de vez em quando vou lá fazer um carinho em sua fuselagem, imagino aquele que o pilotava quase que diariamente num amálgama perfeito entre o humano e a máquina.
Na pré-adolescência já fascinado por aviões, com catorze anos escrevi uma
carta à Boeing pedindo fotos de aviões, e simpaticamente recebi um portfólio
com várias fotos de seus produtos, inclusive um que estava sendo lançado
naquele ano de 1960, o fabuloso B-727.
Fiquei apaixonado por aquela aeronave de asas enflechadas, motores na
traseira e cauda em T, um lindo avião!
Mal sabia eu que dez anos depois estaria dentro de um deles, voando pela
VARIG, numa das aeronaves mais fantásticas que voei.
A década de 70, foi um divisor de águas para a nossa VARIG, em tudo e por
tudo.
Novos aviões de última geração como o próprio B-727 e logo a seguir em 1974, a chegada dos primeiros Wide-Bodies, DC-10.
Dirigiu o Serviço de bordo de 1971 a 1990, e é lembrado com carinho por
todos, graças à sua postura como Diretor e ao seu carisma como pessoa.
Sabia o nome de todos e em que turma haviam se formado. Incrível a sua
memória!
Também foi nos três primeiros anos da década de 70, que o número de
tripulantes, principalmente comissários, triplicou com as novas aquisições de
aeronaves pois a empresa já pensava em dar o seu maior salto tecnológico rumo
ao jumbo 747 que começariam a chegar nove anos após a chegada do primeiro
DC-10.
Foi um salto incrível em tudo e por tudo, nessa década e eu estava
acompanhando todo esse desenrolar de vitórias, voando esses equipamentos e
contribuindo como instrutor de comissários até 1974, de alguma maneira
profissional para essa trajetória de sucesso.
Com muito orgulho eu também faço parte dessa bonita história.
Nessa década (70), portanto, há no mínimo cinquenta anos, era realmente
extraordinário que nos voos de B-727 pela costa, de Porto Alegre a Manaus, a
VARIG tivesse um serviço de bordo com porcelana Noritake japonesa, faqueiros
inox da Hércules e copos de cristal para os serviços de almoço, com os melhores
vinhos e demais bebidas alcoólicas para os drinks e canapés pré- refeições.
O luxo e o requinte no serviço de bordo eram tão primorosos que em etapas
curtas de 35 a 50 minutos eram servidas mini pizzas e o Chopp sendo tirado de
barris em cima dos carrinhos, à vista dos passageiros.
E estou me referindo a voos domésticos, não à nossa inimaginável primeira classe internacional. Essa era VARIG que eu tive a honra de conhecer, rumo aos píncaros do sucesso de maior Aérea da América Latina e uma das melhores do mundo em serviço de bordo, atendimento, horários e confiabilidade de manutenção.
Nada, absolutamente nada visto, hoje em dia na aviação dita,
"moderna"!
Também é da década de 70, a construção, além do Catering, do maior CEMAN
(centro de manutenção) da América Latina com área de 200 mil metros quadrados
com um hangar principal também o maior da América Latina e o quinto do mundo
capaz de abrigar três boeings 747 simultaneamente.
Paralelo a essa obra gigantesca conhecida como área industrial com
oficinas, restaurantes e serviço médico ainda se iniciou a construção do CTO
(Centro Técnico de Operações), centro tecnológico de primeira grandeza, sem
similar na América Latina, que formou centenas de tripulantes em todas as
categorias e também onde foram instalados os simuladores dos nossos aviões.
Contíguo a esse centro, uma área de lazer de fazer inveja a qualquer
prefeitura estadual.
As perguntas que não querem calar:
Onde está essa maravilhosa empresa que se confrontada com gigantes aéreas
como a Pan Am ou Lufthansa, estava no mesmo nível de excelência ou talvez
melhor?
O que foi feito de tudo o que aqui acima está descrito? O que foi feito de todo o exaustivo trabalho de milhares de pessoas que lá trabalharam e produziram riqueza ao país?
Onde está todo o patrimônio que ajudamos a construir e pertence a seus
funcionários?
Essas respostas talvez estejam na raiz da boçalidade dos que sempre se
locupletaram no Estado brasileiro, demolidor de empresas aéreas como a Panair,
depois a nossa, joias de uma coroa, planos econômicos ridículos que levavam
qualquer investimento de monta à loucura e que talvez qualquer colegial
resolveria melhor, inflação desenfreada, politicalha da pior qualidade
possível, planos megalômanos que nunca saíram do papel, derrotando qualquer
esperança de futuro ao país.
E finalmente os dezesseis anos do maior assalto perpetrado por criminosos
travestidos de políticos a um Estado, no mundo moderno.
Nossos erros pessoais com relação à nossa querida empresa, apesar de não
terem desculpa, também podem ser creditados em parte à falibilidade crônica
exemplar do Estado brasileiro.
Quem foram os culpados?
Eles, aí acima e todos nós que ficamos de observadores, assistindo em
confortáveis poltronas, o Estado derreter nossas expectativas e o nosso futuro.
Nunca vou esquecer a nossa passividade no hangar do Santos Dumont, quando
lá no palco armado, criminosos nos faziam de palhaços. O silêncio e a
passividade foi de dar engulhos. Aquilo
foi horrível!
Aliás, se não me falha a memória até hoje, poltronas continuam ocupadas,
assistindo o mundo desabar sem reagir.
Título e Texto: José Manuel - Todo passado maravilhoso é resultante de
um futuro planejado. Outubro de 2021
Anteriores:
A Varig... Luanda & Cabul
O bebê do Grosman (2ª parte)
Os quadros do Grosman (parte I)
Confira (e anote) o dia da sua coluna preferida
Passageiros rebeldes
Voo Solo - Jacarepaguá - RJ
Retidos no aeroporto
Sem regulamentação
O cafezinho
Água Mineral no Serviço de Bordo
O início da Varig e o pensamento de Ruben Berta
Sem medo de errar, um texto pra lá de verdadeiro, fiel ao que éramos como profissionais e empresa.
ResponderExcluirConfesso, ainda sinto que não digerí todo este desmonte da RG.
Parabéns José Manuel!