terça-feira, 12 de outubro de 2021

Os aloprados inquisidores da CPI

Senado já foi palco de momentos gloriosos e embates de alto nível

Deonísio da Silva

Antes, no Senado da República, era raro encontrar quem não exercitasse com primor a arte da oratória, aprendida com o método bumbum-cadeira-hora, de eficácia comprovada para desasnar qualquer jejuno em português.

Os mais velhos ainda tiveram a graça alcançada de assistir aos embates entre dois senadores dos anos 70, o coronel Jarbas Passarinho, e o jurista Paulo Brossard. Cada vez que um deles falava convencia a todos até que o outro discordava dele e todos mudavam de lado outra vez, tal era a força das respectivas argumentações, feitas num refinamento florentino da linguagem. E com toda a gentileza, pois ambos descartavam os insultos e o mau português.

Que formação tiveram aqueles dois? Não precisaram jamais dizer a nenhum cidadão a frase repulsiva que alguns senadores, vestidos de ameaçadores sátrapas, lembraram com reiterada insistência na semana passada: “Você está falando com um senador da República!”. A réplica poderia ser “é mesmo? — nem parece!”. Ou esta outra: “E o senhor sabe com quem está falando?”. Se alguém assim se pronunciasse, como disse Augusto Nunes, teríamos para o carteiraço lamentável do parlamentar a carteirinha benfazeja do cidadão, lembrando que realmente o brasileiro foi transformado em outro tipo de pagão, pois lhe paga todas as contas e mais o que não devia pagar-lhe.

Na escola antiga não se aprendia somente a escrever, pois os alunos eram ensinados também a falar. E a ouvir, de acordo com a máxima “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha”.

Havia também as declamações, quando era cultivada a arte de recitar. E o que se recitava? Poesia, prosa, trecho do Sermão do Bom Ladrão, por exemplo, do Padre Vieira, o certo é que os textos eram de qualidade comprovada, do contrário não teriam entrado para os livros didáticos e para as antologias, pois antologia quer dizer isso mesmo que a palavra indica: tratado de flores, pois era obrigatório escrever, não apenas corretamente, mas bonito também. Tanto que as reuniões dos melhores eram designadas por florilégio, analecto, catalecto e outros nomes chiques.

Agora, me digam os leitores. Como anda a arte de falar no Senado? O senado brasileiro já foi palco de momentos gloriosos e embates de alto nível, semelhantes às decisões tomadas pelo senado romano nos seus primeiros tempos, instituição que serviu de modelo a senados de todo o mundo. Mas talvez hoje se pareça mais com o senado romano descrito pelos escritores do período. Eles nos contam que os senadores da Roma antiga discutiam longamente assuntos impróprios para o lugar, como o melhor modo de preparar um peixe.

Foi em tal contexto, muito semelhante ao do Brasil atual, que o general Pompeu disse no Século I a.C. que “navegar é preciso, viver não é preciso”, convocando os comandados a zarpar, mesmo sob ameaça de tempestade, porque navios carregados de trigo tinham que chegar a Roma antes que o povo se revoltasse.

Não tinha sido sempre assim. Caminhando no campo de batalha, depois de sua célebre vitória sobre os romanos, o rei Pirro notara que todos os soldados derrotados, mortos ou feridos, tinham sido atingidos pela frente, nenhum pelas costas, em fuga. E ficara muito preocupado.

Pirro propôs paz aos vencidos. Seu embaixador dirigiu-se ao senado romano e estranhou que tantos decidissem o que Pirro, seu chefe, decidira sozinho. A proposta não foi aceita, e ele, maravilhado com a oratória dos senadores, disse a seu chefe no regresso: o senado romano é uma assembleia de reis.

Vários senadores atuais perfazem mais uma assembleia de réus. Imagine a cena, hoje. Quem assiste a uma sessão da CPI fica maravilhado. Os câmeras não erram o ângulo, a iluminação é perfeita, os lares brasileiros estão abastecidos de televisão de alta definição e os celulares dos eleitores e das pessoas a eles vinculados têm imagem e som de boa qualidade.

O problema é o que ouvem e veem. Os brasileiros veem senadores aloprados, descontrolados, ameaçadores e talvez desesperados porque o pior já passou, e muitos deles desejavam o fracasso, preparavam o fracasso e anunciavam um golpe de Estado para breve. Muitos perderam o reto caminho e não será esta CPI que os salvará do naufrágio já vislumbrado nas urnas.

Certamente o povo brasileiro lê pouco. Mas está vendo e ouvindo tudo. O povo brasileiro não vive no país desses senadores. Como conclui Zé Ramalho em famosa canção:  “Pode ser o país do faz-de-conta/ Mas não é com certeza o meu país./ Tô vendo tudo, tô vendo tudo/ Mas, fico calado, faz de conta que sou mudo”.

Título e Texto: Deonísio da Silva*, revista OESTE, 12-10-2021, 8h02

*Professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Os mais recentes são “De onde vêm as palavras” (18ª edição) e o romance “Stefan Zweig deve morrer”.

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