Senado já foi palco de momentos gloriosos e embates de alto nível
Deonísio da Silva
Antes, no Senado da República, era raro encontrar quem não exercitasse com primor a arte da oratória, aprendida com o método bumbum-cadeira-hora, de eficácia comprovada para desasnar qualquer jejuno em português.
Os mais velhos ainda tiveram a graça alcançada de assistir aos embates entre dois senadores dos anos 70, o coronel Jarbas Passarinho, e o jurista Paulo Brossard. Cada vez que um deles falava convencia a todos até que o outro discordava dele e todos mudavam de lado outra vez, tal era a força das respectivas argumentações, feitas num refinamento florentino da linguagem. E com toda a gentileza, pois ambos descartavam os insultos e o mau português.
Que formação tiveram aqueles
dois? Não precisaram jamais dizer a nenhum cidadão a frase repulsiva que alguns
senadores, vestidos de ameaçadores sátrapas, lembraram com reiterada
insistência na semana passada: “Você está falando com um senador da
República!”. A réplica poderia ser “é mesmo? — nem parece!”. Ou esta outra: “E
o senhor sabe com quem está falando?”. Se alguém assim se pronunciasse, como
disse Augusto Nunes, teríamos para o carteiraço lamentável do parlamentar a
carteirinha benfazeja do cidadão, lembrando que realmente o brasileiro foi
transformado em outro tipo de pagão, pois lhe paga todas as contas e mais o que
não devia pagar-lhe.
Na escola antiga não se
aprendia somente a escrever, pois os alunos eram ensinados também a falar. E a
ouvir, de acordo com a máxima “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha”.
Havia também as declamações,
quando era cultivada a arte de recitar. E o que se recitava? Poesia, prosa,
trecho do Sermão do Bom Ladrão, por exemplo, do Padre Vieira, o
certo é que os textos eram de qualidade comprovada, do contrário não teriam
entrado para os livros didáticos e para as antologias, pois antologia quer
dizer isso mesmo que a palavra indica: tratado de flores, pois era obrigatório
escrever, não apenas corretamente, mas bonito também. Tanto que as reuniões dos
melhores eram designadas por florilégio, analecto, catalecto e outros nomes
chiques.
Agora, me digam os leitores. Como anda a arte de falar no Senado? O senado brasileiro já foi palco de momentos gloriosos e embates de alto nível, semelhantes às decisões tomadas pelo senado romano nos seus primeiros tempos, instituição que serviu de modelo a senados de todo o mundo. Mas talvez hoje se pareça mais com o senado romano descrito pelos escritores do período. Eles nos contam que os senadores da Roma antiga discutiam longamente assuntos impróprios para o lugar, como o melhor modo de preparar um peixe.
Foi em tal contexto, muito
semelhante ao do Brasil atual, que o general Pompeu disse no Século I a.C. que
“navegar é preciso, viver não é preciso”, convocando os comandados a zarpar,
mesmo sob ameaça de tempestade, porque navios carregados de trigo tinham que
chegar a Roma antes que o povo se revoltasse.
Não tinha sido sempre assim.
Caminhando no campo de batalha, depois de sua célebre vitória sobre os romanos,
o rei Pirro notara que todos os soldados derrotados, mortos ou feridos, tinham
sido atingidos pela frente, nenhum pelas costas, em fuga. E ficara muito
preocupado.
Pirro propôs paz aos vencidos.
Seu embaixador dirigiu-se ao senado romano e estranhou que tantos decidissem o
que Pirro, seu chefe, decidira sozinho. A proposta não foi aceita, e ele,
maravilhado com a oratória dos senadores, disse a seu chefe no regresso: o
senado romano é uma assembleia de reis.
Vários senadores atuais
perfazem mais uma assembleia de réus. Imagine a cena, hoje. Quem assiste a uma
sessão da CPI fica maravilhado. Os câmeras não erram o ângulo, a iluminação é
perfeita, os lares brasileiros estão abastecidos de televisão de alta definição
e os celulares dos eleitores e das pessoas a eles vinculados têm imagem e som
de boa qualidade.
O problema é o que ouvem e
veem. Os brasileiros veem senadores aloprados, descontrolados, ameaçadores e
talvez desesperados porque o pior já passou, e muitos deles desejavam o
fracasso, preparavam o fracasso e anunciavam um golpe de Estado para breve.
Muitos perderam o reto caminho e não será esta CPI que os salvará do naufrágio
já vislumbrado nas urnas.
Certamente o povo brasileiro
lê pouco. Mas está vendo e ouvindo tudo. O povo brasileiro não vive no país
desses senadores. Como conclui Zé Ramalho em famosa canção: “Pode
ser o país do faz-de-conta/ Mas não é com certeza o meu país./ Tô vendo tudo,
tô vendo tudo/ Mas, fico calado, faz de conta que sou mudo”.
Título e Texto: Deonísio da
Silva*, revista
OESTE, 12-10-2021, 8h02
*Professor e escritor. Seus
livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Os
mais recentes são “De onde vêm as palavras” (18ª edição) e o romance “Stefan
Zweig deve morrer”.
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