sábado, 2 de outubro de 2021

O cavalheiro do liberalismo

Ludwig von Mises foi o maior expoente da Escola Austríaca e era intransigente com qualquer tipo de intervencionismo estatal

Rodrigo Constantino

Nesta semana foi celebrado o 140º aniversário de Ludwig von Mises, conhecido como “o último cavalheiro do liberalismo”. O economista foi o maior expoente da Escola Austríaca e era intransigente com qualquer tipo de intervencionismo estatal. Numa reunião da Mont Pelerin Society, chegou a lamentar que todos ali presentes fossem “socialistas”. Graças ao esforço de entidades como o Instituto Mises, seu nome se torna cada vez mais conhecido no Brasil, a ponto de vermos faixas em passeatas patriotas pedindo mais Mises e menos Marx.

Ludwig von Mises era filho de engenheiro ferroviário. Nascido em Lemberg, em 1881, à época território do Império Austro-Húngaro, sua família tinha origem judaica e título de nobreza, concedido pouco antes de seu nascimento pelo imperador Francisco José I. Entre 1909 e 1934, foi o principal conselheiro econômico do governo austríaco na Câmara de Comércio de Viena, onde afirmava que sua função era “dizer o que os políticos não poderiam fazer”. Nesse ínterim, também lecionou na Universidade de Viena.

Quando os nazistas avançavam pela França em 1940, Mises e sua esposa tiveram de fugir para os Estados Unidos. Sua casa em Viena foi saqueada pelos comandados de Adolf Hitler, que pilharam livros, documentos e seus ativos. O Reich Alemão o considerava “um arqui-inimigo do nacional-socialismo e de qualquer outro tipo de socialismo”. Após o final da guerra, descobriu-se que a Gestapo detinha 10 mil documentos de Mises, liberados apenas após o fim da União Soviética.

Ao chegar aos Estados Unidos, Mises deparou com a fama de um economista cujas teorias eram bem diferentes das suas. Tratava-se de John M. Keynes, que acabou popularizando a macroeconomia e defendendo um ativismo estatal que Mises e seu colega austríaco Hayek consideravam bastante prejudiciais à economia, especialmente aos mais pobres. Ambos publicaram diversos livros refutando essas teorias e embasando uma defesa filosófica e econômica do liberalismo.

Mises foi um defensor ferrenho da liberdade individual. Ele acreditava que o liberalismo tinha de triunfar por meio do poder das ideias, da persuasão com base em sólidos argumentos. Somente pelas vias democráticas o liberalismo poderia vencer seus inimigos no longo prazo. Mises sempre soube das inúmeras imperfeições da democracia, que não é exatamente louvável por sua capacidade de boas escolhas, mas ainda assim defendeu com unhas e dentes o modelo democrático. O principal motivo era semelhante ao que Karl Popper tinha em mente: a democracia é a forma mais pacífica que conhecemos para eliminar erros e trocar governantes, sem derramamento de sangue.

Popper resumiu bem a questão quando disse que “não somos democratas porque a maioria sempre está certa, mas porque as instituições democráticas, se estão enraizadas em tradições democráticas, são de longe as menos nocivas que conhecemos”. Mises estava de acordo, e defendeu a democracia em diversos livros. Em Liberalismo, por exemplo, ele escreveu: “A democracia é aquela forma de constituição política que torna possível a adaptação do governo aos anseios dos governados sem lutas violentas”. Para Mises, que depositava enorme relevância no poder das ideias, somente a democracia poderia garantir a paz no longo prazo.

Um liberal seguidor de Mises irá sempre lutar pelas vias democráticas

Em sua obra-prima, Ação Humana, Mises reforça essa visão em prol da democracia: “Por causa da paz doméstica, o liberalismo visa a um governo democrático. Democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária. Pelo contrário, ela é o próprio meio para evitar revoluções e guerras civis. Ela fornece um método para o ajuste pacífico do governo à vontade da maioria. […] Se a maioria da nação está comprometida com princípios frágeis e prefere candidatos sem valor, não há outro remédio além de tentar mudar sua mente, expondo princípios mais razoáveis e recomendando homens melhores. Uma minoria nunca vai ganhar um sucesso duradouro por outros meios”.

Em Socialismo, Mises escreve: “A democracia não só não é revolucionária, mas ela pretende extirpar a revolução. O culto da revolução, da derrubada violenta a qualquer preço, que é peculiar ao marxismo, não tem nada a ver com democracia. O liberalismo, reconhecendo que a realização dos direitos econômicos objetivos do homem pressupõe a paz, e procurando, portanto, eliminar todas as causas de conflitos em casa ou na política externa, deseja a democracia”. Ele acrescenta ainda: “O liberalismo entende que não pode manter-se contra a vontade da maioria”. Logo, um liberal seguidor de Mises irá sempre lutar pelas vias democráticas, buscando persuadir a maioria de que o liberalismo é o melhor caminho.

Mises também não era anarquista, no sentido de pregar como meio para a liberdade o fim do Estado. Em Burocracia, por exemplo, ele sustenta que a polícia deve ser uma clara função do Estado. Mises escreve: “A defesa da segurança de uma nação e da civilização contra a agressão por parte de ambos os inimigos estrangeiros e bandidos domésticos é o primeiro dever de qualquer governo”. Em Liberalismo, Mises é ainda mais direto: “Chamamos o aparato social de compulsão e coerção que induz as pessoas a respeitar as regras da vida em sociedade, o Estado; as regras segundo as quais o Estado procede, lei; e os órgãos com a responsabilidade de administrar o aparato de compulsão, governo”.

Ele explica quais seriam as funções básicas do Estado na doutrina liberal: “Liberalismo não é anarquismo, nem tem absolutamente nada a ver com anarquismo. O liberal entende claramente que, sem recorrer à compulsão, a existência da sociedade estaria ameaçada e que, por trás das regras de conduta cuja observância é necessária para assegurar a cooperação humana pacífica, deve estar a ameaça da força, se todo edifício da sociedade não deve ficar continuamente à mercê de qualquer um de seus membros. É preciso estar em uma posição para obrigar a pessoa que não respeita a vida, a saúde, a liberdade pessoal ou a propriedade privada dos outros a aceitar as regras da vida em sociedade. Esta é a função que a doutrina liberal atribui ao Estado: a proteção da propriedade, liberdade e paz”.

Portanto, está muito claro que Mises considerava o Estado fundamental para proteger a propriedade privada. Condenando o anarquismo, Mises diz: “O anarquista está enganado ao supor que todos, sem exceção, estarão dispostos a respeitar essas regras voluntariamente”. Segundo ele, “o anarquismo ignora a verdadeira natureza do homem”, e seria praticável “apenas em um mundo de anjos e santos”.

Muitos dos seus seguidores atuais não concordam com essa visão, e compreendem que, mesmo num mundo de homens imperfeitos, a existência do Estado apenas agrava o quadro contra a liberdade individual. Trata-se de um debate legítimo e, em minha opinião, complexo e inconclusivo. Mas não custa resgatar aquilo que o próprio Mises pensava sobre liberalismo. Para ele, essa era uma doutrina inseparável da via democrática.

Título e Texto: Rodrigo Constantino, revista OESTE, nº 80, 1-10-2021

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