Aqueles que vivem na ignorância resistem à
verdade. Mas não tem jeito, muita gente já descobriu que as sombras refletidas
na parede não eram reais
Ana Paula Henkel
Desde o começo de 2020, quando
a pandemia assustou o mundo, uma nova rotina de viagens e protocolos
draconianos foram instaurados, e eu não consegui mais ir ao Brasil. Depois de
quase dois anos sem pisar na terra que habita o meu coração, finalmente pude
passar três semanas entre os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, além de uma
rápida ida a Brasília. E que três semanas!
Logo nos primeiros dias,
participei da edição brasileira do CPAC (Conservative Political Action
Conference) em Brasília. O CPAC nos Estados Unidos, agora levando suas
franquias por vários países do mundo, é uma conferência política anual com a
presença de ativistas conservadores, políticos de todo os Estados Unidos e de
outros lugares, e é organizado pela American Conservative Union (ACU). Fundado
em 1974, o CPAC tem servido como um barômetro para o movimento conservador
norte-americano — e agora mundial. Ronald Reagan, o 40º presidente
norte-americano, discursou na cerimônia de estreia e, com 13 aparições, foi o
presidente que mais participou do evento.
Já em Brasília, percebi que
alguma coisa está transformando o brasileiro em um apaixonado por política. Política
mesmo, com todo o pacote histórico global. Talvez a eleição de 2018 tenha
contribuído com essa percepção, mas creio que há algo maior nesse “despertar”.
Percebi que não havia uma idade média dos participantes nesta edição do CPAC, e
isso foi muito marcante para mim. Tive a chance de bater bons papos com pessoas
de 15, 20, 40 e até 75 anos! Adolescentes contando que haviam feito trabalhos
na escola sobre o legado de Reagan, Winston Churchill, Margaret Thatcher e até
sobre o brilhante pensador contemporâneo Thomas Sowell. Nem em meus mais
profundos sonhos imaginei estar discutindo Reagan, que aprendi a admirar
ouvindo histórias com o meu pai, com adolescentes no Brasil. Em Brasília,
discutimos liberdade, responsabilidade, Constituição, perseverança para mudar
os ares políticos no Brasil e planos, muitos planos. Saí da capital federal com
o coração transbordando esperança e caí no histórico 7 de Setembro de 2021 na
Avenida Paulista.
Ainda tento encontrar palavras para descrever o que vi e senti naquele dia. Como todos sabem, não foi um 7 de Setembro comum. Havia muito em jogo. Havia uma mensagem a ser entregue. Havia uma ferramenta de freios e contrapesos em nossa Constituição para ser usada entre os Poderes da República que foi ignorada. E há o povo, com seu poder supremo. E que povo! Quarteirões e quarteirões de povo. Não, não li na outrora relevante imprensa sobre o evento com “pouco mais de 100 mil pessoas”. Eu estava lá. E andei… e andei… e andei por muitos quarteirões lotados de gente de todas as idades até conseguir entrar na Avenida Paulista. As ruas pareciam o auditório do CPAC em Brasília elevado a sei lá que potência. Muita gente pequena, gente grande, gente jovem e idosos, negros, brancos, gays, héteros, pobres e ricos. Todos de verde e amarelo. Nunca havia visto nada igual.
Não consegui evitar que
passasse pela cabeça um longo filme de 24 anos como atleta profissional. Todas
aquelas viagens pelo mundo, todas elas com um uniforme verde e amarelo que
transbordava orgulho da mala. Nosso Hino Nacional tocava em alguns carros
espalhados pela Paulista, e o filme olímpico com nosso hino nos pódios insistia
em voltar para trazer algumas lágrimas que tentei esconder. Estava em uma
grande — na verdade, gigantesca — delegação olímpica pelo Brasil. A maior e
mais bonita delas. E não havia lixo jogado nas ruas, baderna, vandalismo,
brigas e discussões. Havia um grande senso de civilidade e responsabilidade,
tão forte que poderia quase ser tocado no ar. Havia uma paixão profunda
encrustada nos rostos das pessoas. Elas tinham o mesmo semblante de quando
tirávamos da mala nossos uniformes novos com a bandeira do Brasil bordada na
manga, como as que os soldados usam em seus uniformes nas guerras.
Às vezes, a cabeça ficava
vazia, sem pensamentos. Eu apenas entrava em estado de transe diante de tantas
imagens de que jamais esquecerei, tantas nuances de verde e amarelo, tantos
sorrisos. Sim, sorrisos apesar de tudo que estamos vivendo no Brasil. Todas as
incongruências dos parlamentares, as canetadas nada republicanas do STF com
todo o seu descaso com a nossa Constituição. E, tentando decifrar aquela
avalanche de informações em forma de imagens sobre a nova realidade do
brasileiro e sua paixão pelo país e pelas ferramentas que podem transformá-lo
em nação, lembrei de uma passagem da obra-prima do filósofo grego Platão, A
República.
A “Alegoria da Caverna” é
provavelmente uma das histórias mais conhecidas de Platão, e sua colocação
em A República é significativa. A República é
a peça central da filosofia de Platão, preocupada principalmente em como as
pessoas adquirem conhecimento sobre beleza, justiça e o bem. A “Alegoria da
Caverna” (ou Mito da Caverna) usa a metáfora dos prisioneiros acorrentados no
escuro para explicar as dificuldades de alcançar e manter um espírito justo e
intelectual.
A subida para fora da caverna
é a jornada da alma na região do inteligível
A alegoria é apresentada em um
diálogo entre Sócrates e seu discípulo Glauco. Sócrates diz a Glauco para
imaginar pessoas vivendo em uma grande caverna subterrânea, que só é aberta
para o exterior no fim de uma subida íngreme e difícil. A maioria das pessoas
na caverna é de prisioneiros acorrentados de frente para a parede posterior, de
modo que não podem se mover nem virar a cabeça. Uma grande fogueira queima atrás
deles, e tudo o que os prisioneiros podem ver são as sombras brincando na
parede à sua frente. Eles foram acorrentados nessa posição durante toda a vida,
desde a infância. Há outras pessoas ali dentro carregando objetos, mas tudo que
os prisioneiros podem ver são suas sombras. Alguns deles falam, mas há ecos que
tornam difícil para os prisioneiros entenderem quem está dizendo o quê.
Em seguida, Sócrates descreve
as dificuldades que um prisioneiro pode ter para se adaptar à libertação quando
ela acontece. Quando vê que há objetos sólidos na caverna, e não apenas
sombras, fica confuso. Os instrutores podem dizer a ele que o que viu antes era
uma ilusão, mas, a princípio, ele presumirá que sua vida sombria era a
realidade. Eventualmente, será arrastado para fora e ficará dolorosamente
deslumbrado pelo brilho do sol e atordoado pela beleza da lua e das estrelas.
Assim que se acostumar com a luz, terá pena das pessoas no interior da caverna
e desejará ficar fora e longe delas, não pensando mais nelas e em seu próprio
passado.
No capítulo seguinte de A
República, Sócrates explica o que quis dizer, que a caverna representa o
mundo, a região da vida que nos é revelada apenas pelo sentido da visão. A
subida para fora da caverna é a jornada da alma na região do inteligível. O
caminho para o esclarecimento é doloroso e árduo, diz Platão, e exige que
façamos quatro estágios em nosso desenvolvimento: a prisão na caverna (o mundo
imaginário, aquele que nos foi vendido como a única opção desde cedo), a
libertação das correntes (a entrada no mundo real), a subida para fora da
caverna (o mundo das ideias) e o caminho de volta para ajudar nossos
companheiros.
Nessa passagem da
obra-prima A República, creio que seja pertinente observarmos que a
educação é dolorosa. Por mais confinado que seja o mundo lá embaixo diante da
parede, ninguém sai da caverna feliz. O processo de aprendizagem envolveu o
reconhecimento do homem de que tudo o que ele aprendeu ou ouviu na vida e tudo
o que ele pensava ser verdade eram uma ilusão — nada além de sombras de coisas
reais. Pode ser doloroso ser levado à verdade. Por muitas vezes, ela é
acompanhada pela desconfortável compreensão de nossa própria ignorância e pelo
fato de que muitas de nossas crenças e suposições mais queridas e mais íntimas
eram falsas. O processo de aprendizagem muitas vezes envolve desafios, suas
pressuposições fundamentais e, em última análise, desistir do que era caro para
cada um de nós. E esse processo pode ser perturbador.
Na obra como na vida real,
quando o prisioneiro é libertado e arrastado para fora da caverna, ele está
cego e confuso pela luz, e pode resistir a ser levado para fora. No entanto,
eventualmente, seus olhos se ajustam para que ele possa ver as coisas ao seu
redor, e até mesmo o próprio sol. Quando o homem volta para a caverna é
ridicularizado e até ameaçado de violência. As pessoas na caverna dizem que não
querem sair, que querem ficar com o que é familiar, sem correr o risco de
pensar em desistir de algo maior. Muitos podem até responder com ódio ou violência
se empurrados para a verdade.
E fica cada dia mais claro.
Aqueles que vivem na ignorância, na militância ou na prostituição intelectual
resistem à verdade. Mas não tem jeito. Milhões de brasileiros saíram da caverna
e descobriram que as sombras refletidas na parede não eram reais, que fomos
manipulados e empurrados por tempo demais para que não chegássemos à superfície
para apreciar o sol. O último 7 de Setembro mostrou que o Brasil não vai mais
voltar para a escuridão.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista
OESTE, nº 80, 1-10-2021
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-