Lamento que a defesa inflamada das “identidades” seja tão selectiva. Uma ocasião, defini-me em público como “não-contribuinte”. Não adiantou: o fisco continuou a subtrair-me rendimentos.
Alberto Gonçalves
A Ucrânia e Taiwan são
brincadeiras. Um destes dias, a Terra acordou com a notícia de que Demi Lovato
voltou a permitir ser tratada pelos pronomes “she” e “her”. Eu próprio fiquei
tão abalado que fui imediatamente tentar descobrir quem é Demi Lovato. É uma
cantora americana, diz a internet. Diz ainda a internet que a senhora tinha
decidido em tempos deixar de ser mulher. Ou deixar de ser somente mulher, não
percebi bem. Percebi que há um ano e pouco Demi Lovato começou a exigir que a
tratassem unicamente pelos pronomes “they” e “them”, como em: “Ele(a)s não
cantam nada de jeito, mas guincham que se fartam” e “Ouvir as cantilenas
dele(a)s é equivalente a um transplante do fígado sem anestesia”.
Não sei de que maneira estes
progressismos, evidentemente louváveis, se aplicam em certas situações da vida
prática. Se, na hora da conta do restaurante, a pergunta “Quem paga hoje?”
tiver a resposta “São ele(a)s”, é capaz de haver confusão à mesa. Porém, pior
será na esquadra, quando o interrogatório da testemunha procura esclarecer a
posse da arma que acabou de chacinar 14 transeuntes: “É dele(a)s!”. E na fila
de suspeitos estão oito criaturas.
Em qualquer dos casos, o
importante é respeitar os sentimentos das pessoas. E, agora, o sentimento de
Demi Lovato (e o seu agente) sugere-lhe voltar a admitir os pronomes anteriores
sem rejeitar os pronomes entretanto adoptados. Isto aconteceu na terça-feira,
data em que a senhora se sentiu “mais feminina”. Para a semana, é muito
possível que haja novidades. Não espantaria que ela/ele(a)s visse(m) no Ali
Express um barrete ribatejano assaz giro e decidisse(m) identificar-se
exclusivamente como marialva, reivindicando os pronomes respectivos. Até é
plausível que Demi Lovato renuncie por três meses à espécie humana e se assuma
como lontra. Ficarei atento aos telejornais e às aquisições do Oceanário.
Restam dois ou três problemas. Um é a notória instabilidade dos apetites mencionados. Demi Lovato tem 29 anos (se ela concordar com a certidão de nascimento, claro). Apesar disso, viaja entre sexos com a regularidade com que um morador de Gaia que trabalha no Porto atravessa o Douro. A sorte é Demi Lovato, que se considera “bastante fluída”, se limitar a mudanças gramaticais (e não ter de suportar o trânsito do Freixo). Imagine-se se cada epifania da senhora terminava no bloco operatório, com uma junta médica em volta dos genitais. Imagine-se que, em vez de uma adulta, estávamos a falar de um adolescente, que tipicamente altera a opinião de dez em dez minutos. Imagine-se que há países cujas legislações concedem ao adolescente, o exacto adolescente viciado em TikTok e em défice cognitivo, a opção de ir à faca ou receber “terapia” hormonal. Parecendo que não, é chato. Chato e um bocadinho criminoso.
É que é legítimo duvidar da
estabilidade de convicções assim. Salvo exemplos raros, clinicamente
confirmados e reconfirmados, as cambalhotas “identitárias” prendem-se com modas
peculiares, à semelhança dos chumaços nos ombros. Em 2002, que já soa ao
Paleolítico Inferior, havia 0,013% de americanos que se “identificavam” como
transexuais. Em 2011, a percentagem subira para 0,023%. Em 2016, eram 0,6%. Em
2022, 5% dos jovens adultos nos EUA afirmam-se “transgender” ou “não-binários”.
Com crescente frequência, a escola e os “media” condenam os 95% de choninhas
reaccionários e supremacistas que se adequaram à reles biologia. Não tarda,
teremos nas ruas desfiles da exótica minoria de homens e mulheres que não se
acham mulheres e homens.
Descontada a mutilação de
menores de idade, por mim tanto faz. A propósito de descontos, apenas gostaria
que não me descontassem os impostos para patrocinar o conforto emocional
alheio. A propósito de impostos, lamento que a defesa inflamada das
“identidades” seja tão selectiva. Uma ocasião, defini-me em público como
“não-contribuinte”. Não adiantou: o fisco continuou a subtrair-me rendimentos.
E não faltam injustiças e opressões similares. Há gente que se identifica com
“etnias” diferentes e, em lugar de aplausos, recebe uma bordoada nas costas,
nem sempre metafórica. Não é preciso recordar Rachel Dolezal, a caucasiana que
sonhou ser negra e terminou excomungada pela sociedade. Recentemente, uma
actriz portuguesa de telenovelas surgiu de trancinhas no cabelo e viu-se
informada, com péssimos modos, de que só os negros estão autorizados a usar
trancinhas.
Porque é que os “activistas”
das “causas”, que berram pela liberdade na escolha do sexo e do “género”,
abominam a mesmíssima liberdade na escolha da “raça”? Porque é que se pode
ignorar o aparelho reprodutivo que o acaso nos deu e é blasfémia desprezar o
tom da pele com que se nasce? Porque é que uma coisa é considerada subjectiva e
a outra não se deixa alterar nem a tiro?
Conheço os “argumentos” que
“justificam” a contradição (a “apropriação”, o “voluntarismo”, etc.). Não me
apetece debatê-los. Não se debate com zelotas e não se debatem patetices. Noto,
por desfastio, que aplaudir a “fluidez” no “género” e proibi-la na “raça”
implica aceitar que as “raças” possuem características distintas, que essas
características são decididas pelos “activistas” do ramo, e que os “activistas”
impõem estereótipos a que a humanidade, devidamente retalhada em categorias,
deve sujeitar-se sem um pio. Isto não é só segregacionismo, ou puro racismo:
isto é medonho. As ideologias “woke” estão radicadas na intolerância.
Naturalmente, fingem o contrário. Demi Lovato, sedenta de holofotes e da
aprovação deste circo ridículo, também finge ter dois “géneros”. E dois
neurónios.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
6-8-2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-