Humberto Pinho da Silva
Chamava-se Anselmo, Anselmo Tavares. Era católico
e nascera em Macieira de Cambra.
Frequentara, na adolescência, o Seminário. Não no
intento de singrar na vida, mas por sincera vocação.
Porém, não se ordenou. Não o deixaram, porque
corcovava demasiado, devido a enfermidade da coluna vertebral.
Tentou ser funcionário público. Nessa recuada
época, para o ser, bastava consultar o "Diário da República", e
apresentar a documentação necessária.
Enveredou pelos CTT, chegando com dedicação e
espírito de liderança, a quadro superior.
Seu gabinete era visitado pelos humildes
trabalhadores que, aflitos, procuravam proteção e conselho amigo - fosse
profissional ou familiar.
Chegado à idade da reforma, amigos
homenagearam-no. Durante o almoço de despedida, ofertaram-lhe Bíblia de Altar,
ricamente ilustrada.
De todos se despediu, e todos se despediram dele. Ao descer a escadaria da Central do Porto, que desemborcava na rua do Bonjardim, trabalhador de olhos aguados, bradou emocionado:"Lá se foi o último Senhor dos CTT!..."
Deparei-o, certa ocasião, na rua Formosa, no Porto. Caminhava, pensativo, corcovado, de olhar apagado e triste:
Disse-me, amargurado, com leve sorriso bailando
nos lábios: "Ando na reforma agrária, no meu quintal!... Pensava
prosseguir a minha atividade, que tanto gostava, na paróquia, mas delicadamente
insinuaram: chegara o tempo de descansar..."
Décadas depois, em tépida manhã de primavera,
topei-o na rua de Santa Catarina. Passeava, ainda mais curvado e com
bengalinha:
"Andava a podar, no quintal, desequilibrei-me
e estatelei-me. Fui para o hospital, em cadeira de rodas. Disseram-me que
dificilmente andaria..."
Era homem de fé: orou, pediu suplicou e curou-se.
Ficou viúvo. As filhas não o internaram num lar.
Amavam demais o pai. Recolheram-no em suas casas.
Certa vez confessou-me verdade, que todos idosos
conhecem: "Casa dos pais é
sempre a dos filhos, mas a dos filhos nem sempre é a dos pais."
As filhas eram jovens, queriam intimidades...
Convidou-me, pelo telefone, para encontro numa
confeitaria, em Gaia.
Ao chegar, havia pratinho de bolos secos e dois
cafezinhos. Estava acompanhado pela filha mais velha. Palestramos animadamente.
Semanas depois, recebi telefonema. Era da filha:
pai caíra. Levado ao hospital verificaram que não era grave, mas atacou-o uma
virose, como estava fraco, faleceu.
Assim desapareceu um grande apóstolo do Evangelho,
que certa vez confessou-me: "Se pudesse, ainda queria ser padre!..."
Título e Texto: Humberto Pinho da Silva, maio de 2024
Anteriores:Bigodes de gato
O método de Montessori
A porta está aberta, até os cães entram
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-