As queimadas podem dar ao Brasil a chance de recuperar o prestígio perdido. Antes, porém, o governo precisa deixar de culpar os outros pelo que é de sua responsabilidade
Nuno Vasconcellos
Clima de verão em pleno
inverno. Tempo seco numa época do ano em que, pelo calendário normal, deveria
estar chovendo a cântaros na Amazônia. Queimadas por todo lado. Qualidade do ar
sofrível nas grandes cidades... Cada um desses problemas, por si só, já bastaria
para mostrar que há algo muito grave acontecendo com o clima do Brasil.
Somados, então, eles indicam
que o governo terá que achar uma desculpa muito boa para apresentar aos Chefes
de Estado e diplomatas que, no próximo ano, estarão em Belém, no Pará, para
participar da Conferência das Nações Unidas Sobre Mudanças Climáticas — COP 30.
Não será suficiente, desta
vez, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vir com a conversa de sempre,
atribuindo o desastre ambiental que assola o país a pessoas dispostas a
prejudicar o seu governo. Também não soará convincente caso ele insista em
debitar toda a culpa pelos incêndios que vêm acontecendo na conta de
sabotadores que saem tocando fogo nas matas, com a intenção de gerar um caos
político que será cobrado do governo.
Nos últimos dias, várias
pessoas foram presas por provocar incêndios. Os casos precisam ser investigados
e os responsáveis, punidos na forma da lei. Mas daí a colocar toda a
responsabilidade pela situação nas costas desses malfeitores chega a parecer
uma manobra diversionista feita com a intenção de camuflar a responsabilidade
que cabe ao governo.
Também não surtirá efeito positivo caso o presidente insista em culpar os países ricos pela situação do Brasil. Lula já disse várias vezes que o mundo desenvolvido se recusa a arcar com a obrigação de financiar as políticas de preservação que exigem dos países emergentes. Talvez ele esteja certo. Mas a verdade é que a questão vai muito além de discutir quem pagará a conta. É hora de apagar a fogueira das vaidades que sempre consome os políticos e tratar o problema com humildade. A situação é grave demais para se resumir a encontrar os culpados pela tragédia.
Ainda que o mundo estivesse
disposto a bancar o esforço brasileiro pela preservação de seus biomas e
entregasse trilhões e trilhões de dólares a fundo perdido para financiar o
trabalho, o Brasil talvez não soubesse o que fazer com tanto dinheiro. A questão
é que o governo perdeu um tempo excessivo tentando reduzir o tema da
sustentabilidade a uma questão ideológica. E, por ter perdido um tempo
precioso, o país não dispõe de um plano consistente que indique a melhor
maneira de lidar com a questão ambiental.
ATAS DA VENEZUELA — A sensação é a de que o ninguém no Planalto ou
na Esplanada tem a mínima ideia do que fazer diante de algo que, não faz tanto
tempo assim, era denunciado pelo grupo que hoje está no poder como um problema
de solução simples — que só não havia sido resolvido por falta de compromisso
do governo anterior com a causa do verde e da sustentabilidade. Bastaria dar
poder aos órgãos ambientais para que tudo se resolvesse num estalar de dedos.
Em outras palavras, bastaria
que o Ministério do Meio Ambiente deixasse de ser tocado por gente como Ricardo
Salles ou Joaquim Álvaro Pereira Leite — titulares da pasta durante do governo
Bolsonaro — e fosse entregue a uma ambientalista de prestígio internacional,
como é o caso de Marina Silva, para que as chamas se extinguissem e o verde
voltasse a cobrir a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal e todo o país.
A realidade, porém, tem se
mostrado muito mais complexa do que o discurso eleitoral fazia crer. Boas
intenções e discursos inflamados não são suficientes para apagar as chamas que
queimam as florestas.
A trajetória de Marina no ministério do Meio Ambiente do terceiro mandato de
Lula é o retrato mais perfeito da falta de rumo do governo diante da questão
ambiental. Tratada como celebridade pelo mundo afora e dona de ideias firmes no
que se refere à preservação da Amazônia, Marina custou a despertar para a necessidade
de mostrar a cara e interferir no debate sobre as queimadas e outros fenômenos
climáticos extremos. E nos raros momentos em que se pronunciou a respeito, fez
questão de debitar na conta da sociedade a responsabilidade pela situação ter
chegado ao ponto em que chegou.
Na quarta-feira passada, em
uma de suas primeiras manifestações sobre a questão, Marina disse que o governo
está fazendo sua parte e que, se a situação não está melhor, é porque a
sociedade não fez o que deveria ter feito. “Tudo que precisava ser feito, a
gente está fazendo. Agora é preciso que a gente entre em uma lógica de a
sociedade também se responsabilizar”, disse a ministra em entrevista publicada
pelo portal UOL. Na sexta-feira, ela voltou a se manifestar — mas nada do que
tem dito parece suficiente para eliminar a sensação de inoperância de sua
pasta.
A ministra se esquece de
revelar, talvez porque elas não existam, quais são as ações concretas que o
governo tem levado adiante para lidar com uma situação de emergência que só
piora. A impressão que se tem é a de que, diante das labaredas, toda ação se resume
a mandar brigadistas combater o fogo ou escalar as Forças Armadas para fazer o
trabalho dos bombeiros. Isso é importante, mas não basta! As pessoas querem e
têm o direito de saber quais providências serão tomadas caso uma área que ainda
não foi atingida venha a entrar em combustão. Também querem saber o que será
feito para recuperar as que já foram consumidas pelo fogo e qual é o plano para
recuperar as matas ciliares cuja falta vem matando os rios de todo o país. Nada
disso foi feito.
Preocupada em impedir qualquer
atividade econômica que contribua para melhorar as condições de vida da
população amazônica — como é o caso da exploração de petróleo na margem
equatorial — Marina não consegue sequer encontrar uma solução satisfatória para
o movimento dos funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Renováveis — IBAMA —, que desde o início do ano não pegam no batente.
E que insistem em manter sua operação enquanto o país é consumido pelas chamas.
A verdade é que a ministra foi
incapaz, quase dois anos depois de sua volta ao cargo que já havia ocupado no
primeiro governo Lula, de apresentar um plano consistente e convincente para
enfrentar o problema ambiental no Brasil. Uma piada de gosto duvidoso que corre
em Brasília nos últimos dias diz que a possibilidade de um plano como esse
aparecer é a mesma de alguém apresentar as atas que comprovam a vitória do
ditador Nicolás Maduro nas eleições da Venezuela. Ou seja, nenhuma.
OPORTUNIDADE — Qualquer que seja o caminho que o governo decida
seguir para lidar com essa questão, é fato que a tragédia ambiental que se vê
neste momento não é um problema exclusivamente brasileiro. Incêndios de grandes
proporções têm sido comuns na Califórnia e na Europa. Em 2017, o fogo fugiu do
controle no coração de Portugal e matou quase 70 pessoas — numa das maiores
tragédias ambientais da história lusitana.
O fenômeno tem, portanto,
dimensões globais e a responsabilidade sobre ele precisa, sim, ser
compartilhada com os países desenvolvidos, com as outras nações emergentes, com
a sociedade e com o mundo inteiro. Essa verdade, ao invés de servir de desculpa
para que as autoridades se esquivem de suas responsabilidades, deveria ser
aproveitada como uma oportunidade para o Brasil assumir a liderança desse
processo. Para isso, ele precisa anunciar o que pretende fazer e assumir a
tarefa de resolver o problema ambiental. Condições para isso, existem.
No entanto, não se vê um único
sinal de que esse trabalho será feito. Enquanto o país pega fogo, o governo
está mergulhado em outras prioridades. A principal delas é a disputa com o
Congresso em torno de matérias que gerem mais dinheiro para cobrir as despesas
públicas que o Planalto se recusa a cortar. E os parlamentares, de costas para
os interesses do país, se dedicam a cuidar de suas próprias demandas no período
eleitoral e a encontrar meios de aumentar seu acesso aos cofres públicos por
meio de emendas fajutas. Este é o país que temos.
É aí que está o xis da
questão. Por mais incrível que possa parecer, a atual tragédia ambiental pode
acabar se convertendo numa oportunidade de unir o país em torno de uma causa e
de restituir ao governo o prestígio que vem sendo consumido pelas chamas. Seria
bom se Brasília iniciasse a virada de chave pelo reconhecimento daquilo que é
de sua responsabilidade e deixasse de apontar o dedo para os adversários
políticos, o agronegócio e os países ricos quando se trata de indicar o que há
de ruim quando o assunto é a sustentabilidade. Feito isso, o passo seguinte
seria a identificar os procedimentos que deveriam ser adotados para a redução
dos impactos dos eventos climáticos atípicos que vêm se tornando cada vez mais
comuns.
O governo deveria vir a
público para anunciar as ações emergenciais que pretende empreender para
combater os incêndios que ameaçam todas as regiões do país. E, no segundo
momento, anunciar e pôr em prática um plano elaborado por especialistas — não
por militantes — com medidas de longo prazo capazes de, inicialmente, salvar a
Amazônia e os demais biomas ameaçados pelo fogo e por outras tragédias
climáticas. Então — e coberto de autoridade — ele teria o direito de exigir dos
outros países providências que o ajudariam a salvar o planeta.
PAÍS SUFOCADO — É preciso saber que a situação atual é ruim e nada
indica que haverá melhoras significativas sem que o ser humano faça sua parte.
Na quarta-feira passada — ainda durante o inverno, portanto — os termômetros
registravam em alguns pontos da cidade do Rio de Janeiro temperaturas entre
40ºC e 41º. Enquanto isso, a umidade relativa do ar descia a níveis além de
preocupantes.
As praias, é claro, ficaram
lotadas. Mas, tirando essa possibilidade de se refrescar que faz parte da vida
carioca, nada há para ser comemorado diante da onda de calor que traz com ela
tantas consequências indesejadas. O país inteiro está sufocado sob os efeitos
da maior estiagem dos últimos anos. A falta de chuvas transformou o campo um
ambiente propício para queimadas. Volta e meia, um foco de incêndio surge na
mata ou na lavoura, foge do controle e gera um fogaréu que devasta hectares e
hectares de plantações, florestas e áreas de proteção ambiental.
O risco está por toda parte.
Na semana passada, 59 dos 92 municípios do Rio de Janeiro foram apontados como
áreas sujeitas a incêndios. A região agrícola do interior de São Paulo arde em
chamas — situação que se espalha por Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás e
Tocantins. Esses estados, como se sabe, são os que concentram a maior produção
agropecuária do país. Outro importante produtor agrícola, o Rio Grande do Sul,
também teve boa parte de sua produção agrícola reduzida. Não pelas chuvas, mas
pela força das águas. A situação chegou a um ponto tão grave que o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, já expressou na semana passada o temor de que esse
quadro absolutamente atípico provoque a elevação dos preços dos alimentos e
pressione os índices de inflação.
NÚMEROS ASSUSTADORES — Não é só. De acordo com o Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (INPE), órgão responsável pelo acompanhamento das
queimadas no Brasil, o mês passado encerrou com um total de 68.635 focos de
incêndio registrados em todo o país. O número significa um crescimento de mais
de 140% em relação aos 28.056 focos de incêndio registrados em agosto de 2023.
O número é assustador, mas está longe de ser o recorde histórico. Em 2007, para
se ter uma ideia, o Programa Queimadas do INPE registrou nada menos que 91.085 incêndios
em todo o país.
Seja como for, os quase 70 mil
focos de incêndio do mês passado, se espalharam pelo Brasil inteiro. Todos os
biomas foram atingidos. O Pampa gaúcho foi o menos afetado — com pouco menos de
70 focos de fogo, ou 0,1% do total. Em seguida, veio a Caatinga nordestina, com
1,8% do total. Depois, o Pantanal que se estende pelo Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, com 6,4%. A Mata Atlântica vem na sequência, com 8,8%. O Cerrado, que
cobre as extensas áreas agrícolas do Sudeste, boa parte do Centro Oeste e um
pedacinho da Amazônia, fica com 27,1% do fogaréu. Os 55,8% restantes afetaram a
Amazônia.
Pelo que se vê, o problema é
grande demais para ter sido tratado pelo governo como se tudo não passasse de
uma manobra orquestrada por forças contrárias ao presidente Lula com o objetivo
de criar dificuldades. “Esse fogo é criminoso”, disse o presidente na
terça-feira passada em Manaus, num evento em que se reuniu com prefeitos
amazonenses para tratar de medidas de combate aos efeitos da estiagem.
No encontro, Lula ofereceu
mais uma dose do único remédio que os governantes brasileiros conhecem para
lidar com situações emergenciais. Ofereceu dinheiro para obras porque, segundo
ele, os prefeitos da Amazônia “têm direito” a isso. Os recursos se destinam
basicamente a dragagem de rios e igarapés na tentativa de melhorar a
navegabilidade e oferecer condições de operação, ainda que precárias, àquela
que é a única forma de acesso a muitos dos 62 municípios amazonenses. Em muitos
casos, as catraias, voadeiras, rabetas, balsas, navios e outras embarcações que
viajam pelo rio Amazonas e seus afluentes são as únicas formas de se chegar a
povoados ribeirinhos. Mas, como já foi dito, mas não custa repetir, é preciso
mais do que dinheiro para resolver um problema que ano após ano vem se
agravando na região que além de abrigar a maior floresta tropical do mundo,
sempre foi bem servida por água abundante.
As consequências econômicas
desse desastre, claro, não atingem apenas o povo da Amazônia. Sem considerar os
efeitos dos fenômenos climáticos atípicos sobre a saúde das pessoas, há
consequências econômicas que não podem ser desprezadas. Algumas, como a alta
dos preços dos alimentos temida pelo ministro Haddad, são tão evidentes que nem
precisam de muita explicação. Outras se manifestam de forma indireta e chegam a
causar espanto quando se observa que são causadas pelas chuvas.
Todo mundo sabe, por exemplo,
que quase todos os aparelhos eletroeletrônicos e motocicletas produzidos no
Brasil são montados na Zona Franca e a maioria deles utiliza componentes de
origem asiática que chegam a Manaus a bordo de navios, acondicionados em
contêineres. Quando o nível dos rios baixa e a navegação fica mais difícil, os
proprietários dos navios passam a cobrar um adicional chamado “Taxa de Pouca
Água”, que chega a custar US$ 5000 por contêiner. Esse valor, claro, é
repassado para o preço das mercadorias — e quem paga por ele é o consumidor
final.
As consequências desse problema, claro, vão muito além da elevação dos preços dos aparelhos de TV e de outros artigos produzidos na Zona Franca — mas esse caso é suficiente para mostrar que a questão ambiental se manifesta em situações que pouca gente imagina. É apenas um exemplo. Há outras situações bem mais evidentes e preocupantes. Entre elas, a própria deterioração das condições do Planeta que, em última instância, pode inviabilizar a vida na Terra. Precisamos agir para impedir que isso aconteça.
Título e Texto: Nuno
Vasconcellos, O Dia, 15-9-2024, 0h
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