João César das Neves
No tempo de Sócrates ainda se falava de plano
tecnológico e necessidade de crescimento. Agora apenas se referem reposições de
benesses e direitos da função pública, como se o dinheiro caísse do céu.
Se não fosse trágico, seria
irónico ver um país recair na mesma armadilha em menos de dez anos. O otimismo
da conjuntura, com défice e desemprego a cair e a economia a acelerar, são a
quase perfeita reprodução da situação de 2007-2008. A grande diferença é a
ausência da crise internacional, catástrofe de dimensões históricas que
transformou a breve primavera na maior crise do Portugal moderno. Será que
desta conseguimos?
De alguma maneira, a situação
atual parece constituir a desforra de José Sócrates. O governo maioritário do
PS há dez anos parecia ter tudo controlado, quando foi traído pela derrocada financeira
global, de que era inocente. Agora António Costa, com o PS maioritário na
extrema-esquerda, tem uma segunda oportunidade de cumprir esse desígnio. As
condições externas estão indiscutivelmente mais favoráveis, e até devem
melhorar, logo que a Europa abandone a austeridade e seja benevolente com o
Sul. Será finamente possível cumprir o programa injustamente cortado há dez
anos?
Esta tese, que implicitamente
fundamenta o executivo, tem um pequeno problema: ignora a verdade da situação.
Porque a derrocada de 2008-2009 não se deveu à crise internacional, mas à
insustentabilidade da trajetória interna. A perturbação externa foi apenas a
faísca que deflagrou a pólvora do nosso desequilíbrio.
O problema que destruiu
Sócrates, e mais cedo ou mais tarde derrubará Costa, é a secular doença
lusitana. Podemos chamar-lhe a «síndrome do Conde de Abranhos». Hoje, como
tantas vezes no passado, larga percentagem da população vive de benesses
públicas que a economia não pode pagar. Pensionistas, funcionários, câmaras,
construtoras, subsídios, dominam a situação política, para conseguir garantir
as suas rendas. O aparelho produtivo acaba espremido pelas exigências das
classes não produtivas.
Esta dinâmica, que há 200 anos
domina a democracia portuguesa, reproduz hoje a versão de 2007, com apenas duas
diferenças importantes. A primeira é que, com o PCP e o BE no poder, a atitude
é mais aberta e descarada. No tempo de Sócrates ainda se falava de plano tecnológico
e necessidade de crescimento. Agora apenas se referem reposições de benesses e
direitos da função pública, como se o dinheiro caísse do céu.
A segunda diferença, muito
mais influente, está na fonte usada para os pagamentos. Nos meados da década
passada, como nos 15 anos anteriores, ainda era possível alimentar os
interesses instalados com dívida externa. Hoje essa via está totalmente
fechada, havendo mais a necessidade de liquidar os juros dos longos tempos de
ilusão. Apesar desta terrível situação, foi ainda possível imitar a
prosperidade através da redução do investimento, público e privado e a poupança
em mínimos históricos. Sócrates, como Guterres e Barroso simularam o sucesso,
estimulando a conjuntura pelo endividamento. Costa faz o mesmo, comendo o
capital.
Assim, a ruína nacional entrou
numa nova fase. Mas talvez Sócrates ainda consiga a desforra, se Costa ficar na
história ainda pior que ele.
Título e Texto: João César das Neves, Professor
Catedrático da Católica Lisbon School of Business and Economics, Observador,
4-5-2017
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