Augusto Nunes
No momento em que escrevo esta
frase, acumulam-se no gabinete do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia,
33 pedidos de abertura de um processo de impeachment contra o
presidente Jair Bolsonaro. No final deste parágrafo, é provável que a pilha
tenha crescido. O que não falta no Brasil é gente capaz de enfrentar
esquadrilhas de vírus chineses para conseguir alguns centímetros ou segundos no
noticiário político. Os pedintes são congressistas, dirigentes partidários ou
sindicais, advogados com tempo de sobra ou dispostos a tudo para escapar do
anonimato. As normas que disciplinam o uso do impeachment autorizam
qualquer cidadão, com o aval de cinco testemunhas, a requerer o despejo do
inquilino do Palácio da Alvorada.
O pedido mais recente foi
subscrito por parlamentares do PSB e chegou a Maia no meio da semana. Os
signatários atribuem ao presidente da República 11 crimes de responsabilidade,
divididos em três categorias. Na primeira figuram os delitos denunciados pelo
ex-ministro Sergio Moro. A segunda agrupa os que puseram em perigo a democracia
e as instituições. Na terceira estão os crimes relacionados com a pandemia de
covid-19. Pela barulheira dos bucaneiros da imprensa que fecharam o cerco em
torno do Planalto em 1º de janeiro de 2019, a cada pedido de impeachment Bolsonaro
sobe mais um degrau do cadafalso. Ignoram ou fingem ignorar, o que dá na mesma,
que basta a aceitação de um único pedido pelo presidente da Câmara para que o
processo comece a tramitar no Congresso. Tampouco se rendem aos fatos: Rodrigo
Maia não vai aceitar nenhum.
Não porque não queira, mas
pela força dos fatos. Aos 49 anos, o morubixaba da Câmara é um dos mais jovens
velhos políticos do país. Maiorais dessa tribo jamais embarcam em aventuras de
desfecho incerto, e sofrem de uma aversão invencível ao cheiro de derrota. Maia
sabe que a aceitação de um pedido é apenas a largada da corrida de longa
distância. Em seguida o processo é remetido a uma comissão multipartidária
formada por 66 deputados, que decidem se o processo deve ser submetido à
votação no plenário. Ultrapassada essa etapa, o pedido de impeachment precisa
ser encampado por dois terços dos 513 componentes da Câmara para ser
encaminhado ao Senado, que decidirá em duas votações o destino do presidente. A
primeira decide por maioria simples se o processo preenche os requisitos
legais. O afastamento do chefe de governo será consumado se, na segunda
votação, for aprovado por dois terços dos senadores.
Isso é o que diz a
lei. Mas é o povo quem dita o ritmo do processo e o destino do
acusado. O povo nas ruas impediu que o impeachment interrompesse
antes do suicídio o governo constitucional de Getúlio Vargas. A indiferença dos
brasileiros apressou o despejo de Carlos Luz e Café Filho, presidentes
interinos em 1955. No começo dos anos 90, Fernando Collor tentou uma
contraofensiva com o apelo patético — “Não me deixem só!” —, e a convocação de
manifestações de apoio. Um mar de cabeças pintadas cobriu praças e avenidas
exigindo o impeachment do quarentão arrogante, e Collor
preferiu a renúncia para escapar da deposição humilhante. A última vítima,
Dilma Rousseff, teve a queda desenhada por portentosas manifestações populares
que provocaram conversões fulminantes mesmo entre comparsas juramentados do PT.
Ao perderem oficialmente o cargo, Collor e Dilma já haviam perdido
o poder e amargavam índices de popularidade siberianos.
Não é o caso de Bolsonaro.
Repórteres que contemplam Lula com olho rútilo e lábios trêmulos de admiração,
na imagem perfeita de Nelson Rodrigues, enxergam em Bolsonaro o grande Satã que
se aproxima do despenhadeiro a cada frase infeliz, a cada derrapagem na curva
fechada, a cada manobra de alto risco. Colunistas que erram até previsões sobre
o passado capricham nas acrobacias cerebrais para avisar em que dia e hora a
cabeça do presidente rolará rumo à planície. Desmentidos por pesquisas de
opinião e pelas redes sociais, culpam a desinformação e o primitivismo da plebe
pelo cálculo equivocado e tratam de rascunhar a profecia seguinte. Quem se
orienta pela imprensa convencional soube que Bolsonaro foi derrotado no segundo
turno por qualquer adversário, como preveniram os institutos de pesquisas. E
agora vai ter o mandato ceifado pelo impeachment. Parece estranho.
Mas é o que dizem os jornais.
O problema é que, goste-se ou
não do personagem, os fatos berram o contrário do que dizem os jornais.
Eleito há um ano e meio, o
presidente só se arriscará a ter o mandado amputado caso resolva meter-se uma vez
por hora nas complicações em que se enfia uma vez por semana. Ou não: as
colisões com os ministros Luiz Henrique Mandetta e Sergio Moro não reduziram o
território ocupado por bolsonaristas irredutíveis. Admita-se que Rodrigo Maia
se arrisque a aceitar um dos mais de 30 pedidos de impeachment. A
trajetória do processo poderá ser redesenhada pela aparição de um ministério
vago, meia dúzia de cargos federais e um punhado de verbas.
Imagine-se ainda que, como
ocorreu com Dilma Rousseff, Bolsonaro fosse afastado do Planalto e tivesse de
esperar no Palácio da Alvorada os próximos capítulos da novela. A presidente
incapaz de dizer coisa com coisa vagava pelos gramados feito alma penada. Os
adversários de Bolsonaro se assombrariam com a multidão de seguidores decididos
a fazer-lhe companhia.
Tudo somado, é evidente que os
jornalistas que odeiam fatos teimam em apostar no impeachment para
elevar o ânimo beligerante dos companheiros de luta, tapear os leitores,
espectadores ou ouvintes e manter a verdade em quarentena. Nunca aprenderão que
não existe jaula que aprisione fatos.
Título e Texto: Augusto
Nunes, Revista Oeste, edição 6, 1-5-2020, 11h03
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