Vale a pena lembrar-se, todas as vezes que
você for informado no noticiário de que “o governo Bolsonaro acabou”, de um
presidente chamado Michel Temer
J. R. Guzzo
É repetida até hoje como um
dos grandes momentos de Mark Twain, homem que jamais perdia uma oportunidade
para rir de seus muitos desafetos, dos jornalistas e de si próprio, a curta
mensagem que enviou de Londres à imprensa americana, em 1897, comentando os
rumores de que teria morrido. “As notícias de minha morte foram muito
exageradas”, escreveu Twain, um dos príncipes da sátira na literatura dos
Estados Unidos do século 19. É mais ou menos o que se poderia dizer, hoje, das
notícias sobre a morte do governo do presidente Jair Bolsonaro. Ela vem sendo
anunciada há meses pela mídia; nos últimos sete dias, com a demissão do ministro
Sergio Moro, transformou-se num fato mais do que consumado no noticiário
nacional. “O governo acabou”, estão dizendo de cinco em cinco minutos
praticamente todos os especialistas em política disponíveis para o público em
geral. Mark Twain diria: “É um exagero”.
THE TIME MARK TWAIN FEUDED WITH THE CINCINNATI
ENQUIRER
In 1870, the Cincinnati Enquirer or, rather, an
anonymous columnist writing for the Cincinnati Enquirer, called Mark Twain a
liar.
|
É um exagero, em primeiríssimo
lugar, porque o governo simplesmente não morreu, apenas isso; experimente
deixar de pagar seu imposto de cada dia para ver o que acontece. O presidente
não se suicidou, pois até o fechamento desta edição continuava entre nós, de
corpo presente e de alma também, assinando decretos, nomeando gente e
desfazendo nomeações. Mas então precisa sair já, queixam-se os que querem um
outro em seu lugar. “O país não aguenta”, dizem. Bobagem: é claro que aguenta,
como vem aguentando há 500 anos. (Aguentou Dilma Rousseff durante cinco anos e
meio; como vai se perder, agora, por causa de um simples Bolsonaro? Não faz
sentido.) Quem tem de aguentar, na verdade, é Bolsonaro. Ele é um ás de ouros,
com certeza, em matéria de criar inimigos e na arte de transformar
desentendimentos em brigas e brigas em guerras. Mas os fatos, até agora,
demonstram que está sabendo aguentar.
Sua última crise, e olhem que
o homem está tendo de matar uma crise por dia, promete ser mais um desses
anúncios de fim de mundo nos quais, quando se fazem as contas, o mundo não
acaba.
Bolsonaro, aqui, tem a plena
assistência da razão — o que não é, certamente, um bom sinal para seus
inimigos. O ministro Alexandre de Moraes, numa decisão que permanecerá como uma
das joias mais extravagantes na coleção de abusos praticados no STF que temos
aí, cassou do presidente da República o direito de nomear o diretor da Polícia
Federal, como estabelecido em lei, e cassou do delegado e cidadão Alexandre
Ramagem o direito civil de ser nomeado para dirigir a PF. Ele é brasileiro,
alfabetizado, maior de idade e não responde a nenhum processo da Justiça
criminal. Mas é amigo próximo do presidente — e por isso, segundo Moraes, não
pode assumir o cargo. “Desvio de função”, disse ele.
É um disparate do ponto de vista legal, lógico e moral.
O precedente que o ministro
achou para justificar sua decisão foi a anulação do decreto de Dilma que nomeou
o ex-presidente Lula para a chefia de sua Casa Civil, determinada pelo ministro
Gilmar Mendes em março de 2016. Não poderia citar nenhum exemplo pior que esse.
Lula, naquele momento, era simplesmente acusado de corrupção e lavagem de
dinheiro — foi nomeado unicamente para ganhar “imunidades” perante a Justiça.
Desvio de função é isso. Não é ter a confiança pessoal de quem faz a nomeação.
Por conta disso vamos ter direito, agora, a dias e dias de fornalha acesa — mas
como é que isso tudo, na prática, pode levar à queda do presidente? Ele já
disse que, “se for preciso”, nomeará outro diretor para a PF. É complicado
alguém sair derrotado de uma briga se já diz, antes, que não haverá realmente
essa briga. O fato é que Bolsonaro não quer sair. E, se está disposto, como
parece, a fazer tudo o que for necessário para ficar, vai acabar ficando até o
último dia de seu mandato legal.
Vale a pena lembrar-se, todas
as vezes que você for informado no noticiário de que “o governo Bolsonaro
acabou”, de um presidente chamado Michel Temer. Desde seu primeiro dia no
Palácio do Planalto, Temer estava morto e enterrado. Quando apareceu a
“denúncia” do empresário Joesley Batista, então, o mundo ruiu de vez. A
renúncia de Temer foi exigida em público, num incompreensível editorial no
horário nobre da televisão. Ministros, antes e depois, tiveram de ser
demitidos. O Supremo ia prender todo mundo. Todos os grandes cérebros de nossa
análise política garantiram que o presidente estava clinicamente morto. Mas em
nenhum momento, nessa história, Temer quis sair, nem o Congresso quis que ele
saísse. Resultado final: três vezes zero.
A calamidade do diretor da PF
e o “inquérito” que rola no Supremo para apurar “crimes cometidos no exercício
da função” por Bolsonaro são apenas a mercadoria exposta hoje na vitrine. A
coisa começou ainda antes da posse, com o escândalo do “uso indevido das redes
sociais na campanha eleitoral” — exigiu-se, e a mídia levou a sério, que ele
nem sequer recebesse a faixa.
O presidente também deveria
sofrer um processo de impeachment por “falta de decoro”, por
debochar da imprensa e por suspeita de ser cúmplice no assassinato da vereadora
Marielle. Ultimamente, fala-se de um possível incentivo ao genocídio, por fazer
pouco da covid-19, e mesmo de “crimes contra a humanidade”. A isso tudo se
somam as exigências de impeachment por insulto a jornalistas
mulheres, por crime de constrangimento a funcionário no ofício, no caso de
Sergio Moro, e por divulgação de notícias falsas. Até o deputado Alexandre
Frota entrou com pedido de impeachment contra Bolsonaro.
Parece um milagre, no fundo, que ele ainda esteja no cargo. Mas não é milagre
nenhum. Quem é culpado de tudo acaba não tendo culpa de nada.
Jair Bolsonaro está na Presidência porque a Constituição manda que
esteja lá quem teve mais votos na eleição presidencial.
Esse foi seu caso — e só rompe
a Constituição, por pior que ela seja, quem tem a força das armas a seu lado.
Os que querem derrubar o presidente não têm um único estilingue. Terão de se
conformar, então, com a possibilidade de arrumar um candidato capaz de ganhar
as eleições de 2022 ou fazer com sucesso um processo de impeachment,
como foi com Dilma e com Fernando Collor. É essa, e só essa, a questão real. O
fato, sempre ignorado pelo noticiário, é que para derrubar por meios legais o
presidente da República não basta juntar três advogados, meia dúzia de bispos e
um aglomerado de artistas de novela. Não são eles, nem os editorialistas da
imprensa ou os entrevistados em mesas-redondas da televisão, que vão votar
o impeachment de Bolsonaro. Não são nem os onze ministros do
STF somados. São os 513 deputados e 81 senadores com mandato atual no Congresso
— e é preciso que dois terços deles votem pela deposição do presidente. Faça
suas contas.
O leitor já ouviu falar na
Codevasf? É provável que não. Mas pode ter certeza de que os deputados e
senadores sabem tudo sobre essa Codevasf, ou “Companhia de Desenvolvimento dos
Vales do São Francisco e do Parnaíba” — e principalmente sobre o que querem
dela. Pensam muito, também, na Fundação Nacional de Saúde, no porto de Santos e
no Departamento Nacional de Obras contra a Seca. Ou no DNIT, que opera na área
de transportes, no Incra, que controla as questões de propriedade e uso da
terra, e no Banco do Nordeste. Estão de olho na vigilância sanitária, nos
armazéns estatais e nas licenças para emissoras de rádio e televisão. Nem a
repartição que cuida do patrimônio histórico e artístico está a salvo. São
dezenas de órgãos públicos, com centenas de diretorias, milhares de empregos
gordos e bilhões no orçamento. É nisso que os juízes efetivos de Bolsonaro, os
que têm voto em seu eventual impeachment, estão pensando — não na
OAB, nem nos cientistas políticos, nem no que o presidente realmente fez ou não
fez, ou nas provas de que teria feito. Os sinais que o governo tem dado são de
que está disposto a abrir para seus julgadores a porteira desse mundo de
maravilhas. É o “acordo político” que vem sendo cobrado de Bolsonaro desde o
dia em que foi eleito.
“Temos de ter cautela e
equilíbrio neste momento. A pressa em relação ao impeachment não
vai ajudar.” O autor da frase, dita logo que começaram as negociações, é o
deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Ele é dado no noticiário,
diariamente, como o grande marechal de campo das tropas que vão derrubar o
presidente.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
Revista Oeste, edição 6, 1-5-2020, 11h03
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