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O encontro dos líderes da União Europeia para salvar o
euro, em Bruxelas: 26 países de um lado, a Grã-Bretanha de outro
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Ricardo Setti
Os noticiários de hoje trazem
informações sobre abalos em curso na coligação que governa a Grã-Bretanha,
liderada pelo primeiro-ministro conservador David Cameron e tendo os
liberais-democratas do vice-premier Nick Clegg, em consequência da postura que
Cameron adotou durante a dramática reunião de cúpula dos governantes dos 27
países da União Europeia que terminou perto de seis horas da manhã do sábado,
9, na capital da UE, Bruxelas.
Clegg teme que Cameron tenha
deixado “isolado” o Reino Unido com sua decisão de manter-se fora da inédita,
ousada decisão adotada pelos outros 26 integrantes da UE: abrir mão de mais uma
parte das respectivas soberanias nacionais em favor do fortalecimento e do
poder de intervenção da União Europeia no controle do endividamento público dos
países-membros, principal causa da brutal crise de credibilidade que se abate
sobre a Europa e a moeda comum de 17 nações, o euro.
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Cameron com seu parceiro
Clegg, liberal-democrata: temor ao isolamento
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Sem um plano B
Clegg foi modesto em suas
preocupações. Passados alguns dias da decisão da União Europeia, assentada a
poeira das frenéticas negociações que se estenderam por mais de 40 horas e
vindas à tona mais informações sobre o caso, o que se constata é que Cameron
talvez tenha sido responsável pelo maior desastre da diplomacia britânica em
décadas.
Ele compareceu à reunião dos
“27” disposto a usar pela primeira vez, como anunciou, o direito de veto da
Grã-Bretanha – segunda maior economia da Europa, após a Alemanha e à frente da
França –, que cabe a todos os integrantes da UE, à proposta arquitetada pela
chanceler (primeira-ministra) alemã Angela Merkel e o presidente francês
Nicolas Sarkozy de um pacto fiscal que implicaria fortalecer a disciplina e a
coordenação econômica dos 17 países do euro.
Mesmo não pertencendo à zona
do euro, a Grã-Bretanha pode vetar decisões a respeito que considere
prejudicial a seus interesses.
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Cameron e os jornalistas em Bruxelas: sua decisão de
vetar o acordo foi driblada pela dupla Merkel-Sarkozy
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Cameron anunciou sua decisão
de vetar a proposta por ser contrário a qualquer regulação bancária que
afetasse a City de Londres, principal centro financeiro da Europa, por
“contrariar os interesses nacionais” do Reino Unido. O veto se basearia nas
regras vigentes nos tratados da União Europeia que preveem a necessidade da
unanimidade dos 27 países para que se adote uma série de medidas.
Um drible espetacular
Mas Cameron levou um drible
espetacular quando, tardiamente, percebeu que Merkel e Sarkozy, apoiados pelos
governos das duas outras grandes economias que completam as cinco principais da
União Europeia – os da Itália e da Espanha –, haviam freneticamente articulado
o apoio de todos os demais 22 países do grupo a suas propostas, que terão como
base não os tratados vigentes, mas um acordo intergovernamental, como se fosse
um novo tratado, e inclusive dos países que não fazem parte da “zona do euro”:
Bulgária, Dinamarca, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia, República Checa,
Romênia e Suécia. Alguns desses países ainda devem consultar seus parlamentos,
mas o acordo está feito e deve estar implementado até março próximo, de uma
forma que não se choque com toda uma vasta legislação europeia já em vigor.
Ou seja, Cameron compareceu à
reunião tendo no bolso a carta do veto com base nos tratados da União Europeia,
em especial o Tratado de Lisboa, de 2007, que entrou em vigor em 2009, espécie
de Constituição do grupo, e sem um plano B. Quando todos os demais países da
União Europeia se dispuseram a um acordo extra Tratado de Lisboa, Cameron ficou
falando sozinho.
As novas medidas são drásticas
A proposta germano-francesa
contém uma série de medidas drásticas, como fazer com que todos os países da
zona euro inscrevam em suas Constituições a chamada “regra de ouro” de fixar um
limite para o déficit dos orçamentos dos países – inicialmente de 3% do PIB,
mas caminhando, até 2015, para a paradisíaca taxa de 0,5% –, estabelecer 60% do
PIB como limite máximo para o total da dívida pública, encarregar o Tribunal de
Justiça da UE, sediado em Luxemburgo, de zelar pelo cumprimento dessas metas,
aplicar sanções pesadas para os países faltosos e até submeter previamente ao
exame da Comissão Europeia, espécie de superministério da União, os orçamentos
nacionais antes de sua aprovação pelos respectivos parlamentos.
Regulação financeira no
horizonte
O acordo ainda prevê a entrada
em vigor em julho do ano que vem – um ano antes do previsto – do Mecanismo
Europeu de Estabilidade (MEDE), fundo permanente da zona do euro para acudir
países em crise, no valor inicial de meio trilhão de euros, e, grande novidade,
cujas decisões não necessitarão da habitual e paralisante unanimidade para
serem implementadas: exige-se, sim, uma maioria qualificada de países que hajam
contribuído com 85% dos recursos do fundo.
A regulação financeira temida
por Cameron também está no horizonte, que inclui, ainda, uma coordenação,
passando por Bruxelas, de todas as ações de grande vulto de política econômica
dos Estados-membros, e uma unificação da alíquota do imposto de renda cobrado
das empresas.
Cameron desejava, para
levantar seu veto, “a inclusão no Tratado de Lisboa de um protocolo que
eximisse a Grã-Bretanha da aplicação de uma série de regulamentos financeiros”
para proteger a City, explicou Sarkozy. “Não pudemos aceitá-lo porque
consideramos que parte dos problemas do mundo provêm da desregulamentação dos
serviços financeiros”.
Cameron só agradou aos seus
Cameron agradou aos
“eurocéticos” de seu partido, ferozes opositores à maior integração do Reino
Unido à União Europeia, e recebeu duas dezenas deles para um jantar na casa de
campo dos primeiros-ministros em Chequers, em Buckinghamshire, a uns 70
quilômetros de Londres. Jornais conservadores britânicos também elogiaram sua
decisão: “Os franceses e os alemães podem rugir, mas Cameron fez o correto a
afastar-se de um continente que afunda”, vociferou The Times. “É preciso
felicitar a Cameron por sua corajosa decisão. Iniciamos finalmente uma mudança
profunda em nossa tortuosa relação com a Europa”, publicou o Daily Mail. O
tabloide conservador Daily Express foi mais longe, comemorando ver “o Reino
Unido próximo de sair da União Europeia”.
Daí, porém, não passaram os
elogios domésticos ao primeiro-ministro. “Cameron atuou visando seu público
doméstico e não como um dirigente de nível internacional. Priorizou seu partido
em lugar de seu país”, criticou o “progressista” The Guardian. Para alguém que
dizia defender a City de Londres, a bíblia da própria City, o Financial Times,
considerou que “deixar vazia a cadeira é um desastre político que nenhum outro
membro da União Europeia apoia”, acrescentando que “forçar os países do euro a
criar sua própria união paralela não servirá para proteger a City”. O diretor
do jornal, Lionel Barber, disse à BBC: “Estamos completamente sós”.
Avanço espetacular rumo à
governança supranacional
Em outros países europeus, a
reação da mídia dá conta do isolamento britânico. “Os britânicos nunca
estiveram comprometidos com a unidade europeia, e o projeto de maior integração
fiscal andará melhor sem eles”, sentenciou Der Spiegel, a principal revista da
Alemanha, enquanto o jornal conservador francês Le Figaro lembrou que “o Reino
Unido honrou sua tradição de país dissidente, mas desta vez Cameron se entregou
a um jogo perigoso”.
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Merkel e Sarkozy em Bruxelas:
artífices de um acordo que, se der certo, representará um avanço inédito para a
integração europeia.
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O entendimento predominante,
entre líderes europeus e comentaristas, é que o acordo obtido em Bruxelas –
inequivocamente obra da persistência, da capacidade de negociação e da ousadia
de Merkel e Sarkozy – foi alcançado de forma surpreendentemente rápida para uma
entidade de decisões tão lentas, por sua própria natureza de aliança de 27
países, como a União Europeia. E que terá uma implementação difícil, mas cujos
resultados, se tudo der certo, ultrapassarão a questão da credibilidade perante
os mercados para se constituir num avanço inédito, quase espetacular, em
matéria de integração real entre os países e no rumo de uma governança
supranacional nunca vista em tempos modernos.
Título, Imagens e Texto:
Ricardo Setti, revista Veja, 12-12-2011, 22h47 (horário de Lisboa)
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