segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Acordo de Bruxelas representa desastre para a Grã-Bretanha e um avanço espetacular para a União Europeia


O encontro dos líderes da União Europeia para salvar o euro, em Bruxelas: 26 países de um lado, a Grã-Bretanha de outro
Ricardo Setti
Os noticiários de hoje trazem informações sobre abalos em curso na coligação que governa a Grã-Bretanha, liderada pelo primeiro-ministro conservador David Cameron e tendo os liberais-democratas do vice-premier Nick Clegg, em consequência da postura que Cameron adotou durante a dramática reunião de cúpula dos governantes dos 27 países da União Europeia que terminou perto de seis horas da manhã do sábado, 9, na capital da UE, Bruxelas.
Clegg teme que Cameron tenha deixado “isolado” o Reino Unido com sua decisão de manter-se fora da inédita, ousada decisão adotada pelos outros 26 integrantes da UE: abrir mão de mais uma parte das respectivas soberanias nacionais em favor do fortalecimento e do poder de intervenção da União Europeia no controle do endividamento público dos países-membros, principal causa da brutal crise de credibilidade que se abate sobre a Europa e a moeda comum de 17 nações, o euro.

Cameron com seu parceiro Clegg, liberal-democrata: temor ao isolamento
Sem um plano B
Clegg foi modesto em suas preocupações. Passados alguns dias da decisão da União Europeia, assentada a poeira das frenéticas negociações que se estenderam por mais de 40 horas e vindas à tona mais informações sobre o caso, o que se constata é que Cameron talvez tenha sido responsável pelo maior desastre da diplomacia britânica em décadas.

Ele compareceu à reunião dos “27” disposto a usar pela primeira vez, como anunciou, o direito de veto da Grã-Bretanha – segunda maior economia da Europa, após a Alemanha e à frente da França –, que cabe a todos os integrantes da UE, à proposta arquitetada pela chanceler (primeira-ministra) alemã Angela Merkel e o presidente francês Nicolas Sarkozy de um pacto fiscal que implicaria fortalecer a disciplina e a coordenação econômica dos 17 países do euro.
Mesmo não pertencendo à zona do euro, a Grã-Bretanha pode vetar decisões a respeito que considere prejudicial a seus interesses.

Cameron e os jornalistas em Bruxelas: sua decisão de vetar o acordo foi driblada pela dupla Merkel-Sarkozy
Cameron anunciou sua decisão de vetar a proposta por ser contrário a qualquer regulação bancária que afetasse a City de Londres, principal centro financeiro da Europa, por “contrariar os interesses nacionais” do Reino Unido. O veto se basearia nas regras vigentes nos tratados da União Europeia que preveem a necessidade da unanimidade dos 27 países para que se adote uma série de medidas.

Um drible espetacular
Mas Cameron levou um drible espetacular quando, tardiamente, percebeu que Merkel e Sarkozy, apoiados pelos governos das duas outras grandes economias que completam as cinco principais da União Europeia – os da Itália e da Espanha –, haviam freneticamente articulado o apoio de todos os demais 22 países do grupo a suas propostas, que terão como base não os tratados vigentes, mas um acordo intergovernamental, como se fosse um novo tratado, e inclusive dos países que não fazem parte da “zona do euro”: Bulgária, Dinamarca, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia, República Checa, Romênia e Suécia. Alguns desses países ainda devem consultar seus parlamentos, mas o acordo está feito e deve estar implementado até março próximo, de uma forma que não se choque com toda uma vasta legislação europeia já em vigor.
Ou seja, Cameron compareceu à reunião tendo no bolso a carta do veto com base nos tratados da União Europeia, em especial o Tratado de Lisboa, de 2007, que entrou em vigor em 2009, espécie de Constituição do grupo, e sem um plano B. Quando todos os demais países da União Europeia se dispuseram a um acordo extra Tratado de Lisboa, Cameron ficou falando sozinho.

As novas medidas são drásticas
A proposta germano-francesa contém uma série de medidas drásticas, como fazer com que todos os países da zona euro inscrevam em suas Constituições a chamada “regra de ouro” de fixar um limite para o déficit dos orçamentos dos países – inicialmente de 3% do PIB, mas caminhando, até 2015, para a paradisíaca taxa de 0,5% –, estabelecer 60% do PIB como limite máximo para o total da dívida pública, encarregar o Tribunal de Justiça da UE, sediado em Luxemburgo, de zelar pelo cumprimento dessas metas, aplicar sanções pesadas para os países faltosos e até submeter previamente ao exame da Comissão Europeia, espécie de superministério da União, os orçamentos nacionais antes de sua aprovação pelos respectivos parlamentos.

Regulação financeira no horizonte
O acordo ainda prevê a entrada em vigor em julho do ano que vem – um ano antes do previsto – do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEDE), fundo permanente da zona do euro para acudir países em crise, no valor inicial de meio trilhão de euros, e, grande novidade, cujas decisões não necessitarão da habitual e paralisante unanimidade para serem implementadas: exige-se, sim, uma maioria qualificada de países que hajam contribuído com 85% dos recursos do fundo.
A regulação financeira temida por Cameron também está no horizonte, que inclui, ainda, uma coordenação, passando por Bruxelas, de todas as ações de grande vulto de política econômica dos Estados-membros, e uma unificação da alíquota do imposto de renda cobrado das empresas.
Cameron desejava, para levantar seu veto, “a inclusão no Tratado de Lisboa de um protocolo que eximisse a Grã-Bretanha da aplicação de uma série de regulamentos financeiros” para proteger a City, explicou Sarkozy. “Não pudemos aceitá-lo porque consideramos que parte dos problemas do mundo provêm da desregulamentação dos serviços financeiros”.

Cameron só agradou aos seus
Cameron agradou aos “eurocéticos” de seu partido, ferozes opositores à maior integração do Reino Unido à União Europeia, e recebeu duas dezenas deles para um jantar na casa de campo dos primeiros-ministros em Chequers, em Buckinghamshire, a uns 70 quilômetros de Londres. Jornais conservadores britânicos também elogiaram sua decisão: “Os franceses e os alemães podem rugir, mas Cameron fez o correto a afastar-se de um continente que afunda”, vociferou The Times. “É preciso felicitar a Cameron por sua corajosa decisão. Iniciamos finalmente uma mudança profunda em nossa tortuosa relação com a Europa”, publicou o Daily Mail. O tabloide conservador Daily Express foi mais longe, comemorando ver “o Reino Unido próximo de sair da União Europeia”.
Daí, porém, não passaram os elogios domésticos ao primeiro-ministro. “Cameron atuou visando seu público doméstico e não como um dirigente de nível internacional. Priorizou seu partido em lugar de seu país”, criticou o “progressista” The Guardian. Para alguém que dizia defender a City de Londres, a bíblia da própria City, o Financial Times, considerou que “deixar vazia a cadeira é um desastre político que nenhum outro membro da União Europeia apoia”, acrescentando que “forçar os países do euro a criar sua própria união paralela não servirá para proteger a City”. O diretor do jornal, Lionel Barber, disse à BBC: “Estamos completamente sós”.

Avanço espetacular rumo à governança supranacional
Em outros países europeus, a reação da mídia dá conta do isolamento britânico. “Os britânicos nunca estiveram comprometidos com a unidade europeia, e o projeto de maior integração fiscal andará melhor sem eles”, sentenciou Der Spiegel, a principal revista da Alemanha, enquanto o jornal conservador francês Le Figaro lembrou que “o Reino Unido honrou sua tradição de país dissidente, mas desta vez Cameron se entregou a um jogo perigoso”.
Merkel e Sarkozy em Bruxelas: artífices de um acordo que, se der certo, representará um avanço inédito para a integração europeia.
O entendimento predominante, entre líderes europeus e comentaristas, é que o acordo obtido em Bruxelas – inequivocamente obra da persistência, da capacidade de negociação e da ousadia de Merkel e Sarkozy – foi alcançado de forma surpreendentemente rápida para uma entidade de decisões tão lentas, por sua própria natureza de aliança de 27 países, como a União Europeia. E que terá uma implementação difícil, mas cujos resultados, se tudo der certo, ultrapassarão a questão da credibilidade perante os mercados para se constituir num avanço inédito, quase espetacular, em matéria de integração real entre os países e no rumo de uma governança supranacional nunca vista em tempos modernos.
Título, Imagens e Texto: Ricardo Setti, revista Veja, 12-12-2011, 22h47 (horário de Lisboa)

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