Deonísio da Silva
Assisti à primeira sessão do
julgamento do mensalão por um viés singular, que aqui partilho com os leitores.
Desde menino me encantam os livros, pois eles nos ajudam a entender a vida e
nos explicam o mundo.
Não posso conceber que
tenhamos líderes que não apenas nada leem, como apregoam ser desnecessário
fazer isso, louvando sem cessar os benefícios da ignorância que os alçou aos
postos aonde chegaram e a um estado de bem-estar social privatizado, isto é, a
política que praticam só é boa para eles mesmos.
O cenário, a Torre de Papel do
processo, que desejamos não se torne uma Torre de Babel, pois a confusão tem
sido a principal arma da defesa, uma vez que os próprios advogados estão
convencidos de que seus clientes perpetraram os crimes de que são acusados e
sabem mais do que nós, pois sabem que nem tudo o que foi descoberto está ali
apresentado, que há figuras referenciais que deveriam estar no banco dos réus e
não estão, restando-lhes apenas chicanas como a da estreia: levantar uma
questão de ordem para a qual um dos ministros, afinal vencido, tinha pronto um
voto de centenas de páginas.
Mesmo derrotado por 9 x 2,
goleada raramente vista em jogos de futebol, o esporte nacional, ele saiu
vitorioso, perfilando-se ao lado da defesa na tarefa de espalhar a confusão,
contrariando seus deveres de supremo magistrado, dos quais um dos principais é
ser claro, sem buscar refúgio no abominável juridiquês!
O ministro Lewandowski, se não foi claro no confuso palavrório, deixou claro a quem servia: aos réus! Na quinta-feira, ele foi o melhor advogado de defesa e pelo visto assim será durante todo o processo! Não por ter votado a favor do desmembramento, a tal questão de ordem da defesa, mas pela forma como o fez: demorar bastante para atrasar o julgamento o mais que puder!
O ministro Marco Aurélio votou
com ele, mas por motivos bem diferentes, exumados em linguagem clara, entendida
por todos. Até o ministro Tofolli votou contra Lewandowski e isso de per si já
é evidência de que ele exagerou na confusão que queria espalhar.
O ministro Joaquim Barbosa
irritou o colega porque disse as coisas como elas devem ser ditas: a questão
tinha sido discutida antes e estava resolvida. E era deslealdade com os colegas
da Corte trazê-la de novo! Ele não fez a argumentação ad hominem (para
o homem que julgava), ele a fez ad rem (para a coisa julgada) ad
claritatem (para clareza) et contra balbum (e
contra o bobo), o mesmo balbus que queria fazer de bobos,
não apenas os colegas da Corte, mas nós também!
Mas por que este viés é
singular, se estou dizendo o que todos vimos? É que lembrei de São Bernardo de
Claraval, que morreu há quase mil anos, autor da frase “de boas intenções o
inferno está cheio”, e que reclamou duramente da arquitetura de seu tempo.
Em carta a outro abade perguntou:
“Que querem dizer ao irmão
que lê e contempla essas monstruosidades ridículas, essas belezas assombrosas e
grotescas e essas deformidades admiravelmente belas que povoam os átrios do
mosteiro? A que vêm os macacos volúveis, os lobos furiosos, os tigres malhados,
os centauros horríveis, os esgrimistas lutando, os caçadores soprando os seus
instrumentos musicais? Numa só cabeça, muitos corpos, e num só corpo, por sua
vez, muitas cabeças.”
Ele queria que seus monges se
concentrassem na leitura e na meditação, e achava que os enfeites e
ornamentações dos prédios distraíam os frades e os padres. Vieram os críticos
de arte em seu socorro. As construções de três elementos ou de triângulos eram
referências sutis à Santíssima Trindade. Águias, cordeiros, peixes, dragões,
maçãs, lírios e um sem-número de outras figurações não eram apenas cópias da
natureza, traziam mensagens embutidas.
Mas ele não se conformava com
a interpretação. “Ora uma cauda de serpente num quadrúpede, ora um
peixe com cabeça de quadrúpede. Noutro lugar, eis uma rês com frente de cavalo
e a parte posterior de cabra. Alhures um animal de chifres com a parte de trás
de muar.”
Debalde lhe explicavam os
motivos que tinham baseado aquelas criações artísticas, nas quais eram
vislumbradas múltiplas variedades nas mais diversas imagens. E ele concluía,
tristonho e desanimado: “Com mais prazer se lê nas pedras do que nos livros,
preferindo-se admirar essas singularidades a tomar a peito os mandamentos de
Deus.”
Religioso, buscava a
transcendência, se surpreendia com tudo aquilo e exclamava: “Santo Deus, se
não se peja das farsas, pelo menos por que não se tem medo dos custos?”.
Para quem teve paciência de
ler o artigo até o fim, num tempo em que tudo deve ser rápido e os novos
leitores não podem mais concentrar-se por alguns minutos, pois imagens etéreas,
veiculadas em televisores, tablets e celulares, distraem sua atenção, que já é
pouca, vi nas reflexões de São Bernardo de Claraval uma alegoria do que ocorre
no julgamento do mensalão.
Todos sabem que o rol de
quarenta mensaleiros denunciados semelha até mais do que disse São Bernardo,
parece-se com o hospício imaginado pelo gênio de Machado de Assis em O
Alienista. Se o que os quarenta mensaleiros fizeram não é crime,
então todos podem fazer o que eles fizeram, impunes, como impunes eles têm
ficado até agora, uma vez que a lei é igual para todos!
Ao final de O
Alienista, Doutor Simão Bacamarte, o médico que trata dos loucos, se
interna no hospício e solta todos os clientes. Louco era ele, não aqueles nos
quais diagnosticara a enfermidade e dos quais tratava.
É o que restará à sociedade
brasileira, se punição não houver. O Brasil vai virar um gigantesco hospício
dirigido por pouco mais de quarenta quadrilheiros!
Mas ainda dá tempo de prestar
atenção às admoestações de São Bernardo de Claraval, não por ser santo, mas
pelo que escreveu, e ao menos enquanto durar o julgamento deixar de contemplar
as serpentes com corpos de vacas, ainda que vacas sagradas, e prestar atenção
nos autos!
Se aquela Torre de Papel não
servir para provar os crimes, estaremos diante de um quadro sinistro: de um
lado, um bando de malfeitores, que outrora dirigiam os destinos do país e que
poderão voltar a fazê-lo; de outro, de profissionais altamente qualificados,
que entretanto não conseguiram provar nada do que foi denunciado e que todos
sabem que eram verdades, mas verdades que precisam ser provadas, e comprová-las
requer competência!
Título, Imagem e Texto: Deonísio da Silva, “Feira Livre”, Coluna de Augusto Nunes, 04-8-2012
Colaboração: José
Carlos Bolognese
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