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Foto: Nelson Jr/STF/Divulgação |
Demétrio Magnoli
"O mais atrevido e
escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no
Brasil", segundo a definição do procurador-geral da República, Roberto
Gurgel, no seu memorial conclusivo, começa a ser julgado hoje (02 de agosto) pelo STF. A palavra
"história" está um tanto desgastada. Quase tudo, de casamentos de
celebridades a jogos de futebol, é rotineiramente declarado
"histórico". O adjetivo, contudo, deve ser acoplado ao julgamento do
mensalão - e num duplo sentido. A Corte Suprema está julgando os perpetradores
de uma tentativa de supressão da independência do Congresso Nacional e, ao
mesmo tempo, dará um veredicto sobre um tipo especial de corrupção, que almeja
a legitimidade pela invocação da História (com H maiúsculo).
Silvio Pereira, o
"Silvinho Land Rover", então secretário-geral do PT, tornou-se uma
figura icônica do mensalão, pois, ao receber o veículo, conferiu ao episódio
uma simplória inteligibilidade: corruptos geralmente obtêm acesso a "bens
de prazer" e a "bens de prestígio" em troca de sua contribuição
para os esquemas criminosos. No caso, porém, o ícone mais confunde do que
esclarece. "Vivo há 28 anos na mesma casa em São Paulo, me hospedo no
mesmo hotel simples há mais de 20 anos em Brasília, cidade onde trabalho de
segunda a sexta", disse em sua defesa José Genoino, então presidente do PT
e avalista dos supostos empréstimos multimilionários tomados pelo partido.
Genoino quer, tanto por
motivos judiciais quanto políticos, separar sua imagem da de Silvinho - e não
mente quando aborda o tema da honestidade pessoal. Os arquitetos principais do
núcleo partidário do mensalão não operavam um esquema tradicional de corrupção,
destinado a converter recursos públicos em patrimônios privados. Eles
pretendiam enraizar um sistema de poder, produzindo um consenso político de
longo alcance. O episódio deveria ser descrito como um acidente necessário de
percurso na trajetória de consolidação da nova elite política petista.
José Dirceu, o "chefe da
quadrilha", opera atualmente como lobista de grandes interesses
empresariais, não compartilha o estilo de vida monástico de Genoino, mas também
não parece ter auferido vantagens pecuniárias diretas no episódio em
julgamento. O então poderoso chefe da Casa Civil comandou o esquema de
aquisição em massa de parlamentares com o propósito de assegurar a navegação de
Lula nas águas incertas de um Congresso sem maioria governista estável. Dirceu
conduziu a perigosa aventura em nome dos interesses gerais do lulismo - e,
imbuído de um característico sentido de missão histórica, aceitou o papel de
bode expiatório inscrito na narrativa oficial da inocência do próprio
presidente. Há um traço de tragédia em tudo isso: o mensalão surgiu como
"necessidade" apenas porque o neófito Lula rejeitou a receita
política original formulada por Dirceu, que insistira em construir extensa base
governista sustentada sobre uma aliança preferencial entre PT e PMDB.
A corrupção tradicional
envenena lentamente a democracia, impregnando as instituições públicas com as
marcas dos interesses privados. O caráter histórico do episódio em julgamento
deriva de sua natureza distinta: o mensalão perseguia a virtual eliminação do sistema
de contrapesos da democracia, pelo completo emasculamento do Congresso. A
apropriação privada fragmentária de recursos públicos, por mais desoladora que
seja, não se compara à fabricação pecuniária de uma maioria parlamentar por
meio do assalto sistemático ao dinheiro do povo. Os juízes do STF não estão
julgando um caso comum, mas um estratagema golpista devotado a esvaziar de
conteúdo substantivo a democracia brasileira.
No PT, "Silvinho Land
Rover" será, para sempre, um "anjo caído", mas o tesoureiro
Delúbio Soares foi festivamente recebido de volta, enquanto Genoino frequenta
reuniões da direção e Dirceu é aclamado quase como mártir. O contraste funciona
como súmula da interpretação do partido sobre o mensalão. Ao contrário do
dirigente flagrado em prática de corrupção tradicional, os demais serviam a um
desígnio político maior - um fim utópico ao qual todos os meios se devem
subordinar. São, portanto, "heróis do povo brasileiro", expressão
regularmente usada nas ovações da militância petista a Dirceu.
O PT renunciou faz tempo à
utopia socialista. Na visão do "chefe da quadrilha", predominante no
seu partido, o PT é a ferramenta de uma utopia substituta: o desenvolvimento de
um capitalismo nacional autônomo. Segundo tal concepção, o lulismo figuraria
como retomada de um projeto deflagrado por Getúlio Vargas e interrompido por
FHC. Nas condições postas pela globalização, tal projeto dependeria da
mobilização massiva de recursos estatais para o financiamento de empresas
brasileiras capazes de competir nos mercados internacionais. A constituição de
uma nova elite política, estruturada em torno do PT, seria componente
necessário na edificação do capitalismo de Estado brasileiro. Sobre o pano de
fundo do projeto de resgate nacional, o mensalão não passaria de um expediente
de percurso: o atalho circunstancial tomado pelas forças do progresso
fustigadas numa encruzilhada crucial.
A democracia é um regime
essencialmente antiutópico, pois seu alicerce filosófico se encontra no
princípio do pluralismo político: a ideia de que nenhum partido tem a
propriedade da verdade histórica. Na democracia as leis valem para todos -
mesmo para aqueles que, imbuídos de visões, reclamam uma aliança preferencial
com o futuro. O "herói do povo brasileiro" não passa, aos olhos da
lei, do "chefe da quadrilha" consagrada à anulação da independência
do Congresso. Ao julgar o mensalão, o STF está decidindo, no fim das contas,
sobre a pretensão de uma corrente política de subordinar a lei à História - ou
seja, a um projeto ideológico. Há, de fato, algo de histórico no drama que
começa hoje.
Título e Texto: Demétrio Magnoli, Sociólogo, Doutor em
Geografia Humana pela USP, O Estado de S. Paulo, 02-8-2012
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